Água Viva (6° Parte)

sexta-feira, maio 09, 2008

Sei história passada mas que se renova já. O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua família que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.
Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia.
Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistérios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na água dentro da jarra feita especialmente para abrigar o longo talo de uma só flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. Até que houve determinada rosa. Cor-de-rosa sem corante ou enxerto porém do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o coração em amplidões.
[...]
Oh, como tudo é incerto. E no entanto dentro da Ordem. Não sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade última a gente nunca diz. Quem sabe da verdade que venha então. E fale. Ouviremos contritos.
... eu o vi de repente e era um homem tão extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma alegria de criação. Não é que eu o quisesse para mim assim como não quero o menino que vi com cabelos de arcanjo correndo atrás da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia o quanto era belo e sei que sabia que eu não o queria para mim. Sorriu porque não sentiu ameaça alguma. É que os seres excepcionais em qualquer sentido estão sujeitos a mais perigos que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um táxi. A brisa arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava tão feliz que me encolhi no canto do táxi de medo porque a felicidade dói. E isto tudo causado pela visão do homem bonito. Eu continuava a não querê-lo para mim - gosto é das pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certa forma dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu não entendia.
A coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.
Calo-me.
Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo.
E não tem fórmulas.
Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença - sim? Não demoro. Obrigada.

2 Clariceanos