O Banho (trecho)

terça-feira, maio 27, 2008

[...] Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.
Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na idéia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

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