O Morro do Pasto (trecho)

terça-feira, junho 10, 2008

— Onze horas, disse Felipe.
Mal acabara de falar o relógio da igreja bateu a primeira badalada, dourada, solene. O povo pareceu ou­vir um momento o espaço... o estandarte na mão de um anjo imobilizou-se estremecendo. Mas de súbito o fogo de artifício subiu e espocou entre as badala­das. A multidão, tocada do sono rápido em que sucum­bira, moveu-se bruscamente e de novo rebentaram gritos no carrossel.
Sobre as cabeças as lanternas se embaciavam tre­mulando a visão; os bazares se entortavam a gotejar. Quando Felipe e Lucrécia alcançaram a roda-gigante o sino sacudiu-se acima da noite enchendo de emoção a festa religiosa — o movimento da multidão tornou-se mais ansiado e mais livre. A população acorrera para ce­lebrar o subúrbio e seu santo, e no escuro o pátio da igreja resplandecia. Misturando-se à pólvora queimada a groselha erguia os rostos em náusea e ofuscamento. As caras ora apareciam, ora desapareciam. Lucrécia achou-se tão perto de uma face que esta lhe riu. Era difícil per­ceber que ria para alguém perdido na sombra. Tam­bém a moça fingiu falar com Felipe, olhando porém um desconhecido nos olhos que a claridade de um poste en­chia: que noite! disse ela para o estranho, e as duas caras hesitaram: o carrossel iluminava o ar em giros, as luzes caíam trêmulas... Se houvesse alguma coisa ex­traordinária a suceder enfim no subúrbio, esta viria ir­romper no âmbito da retreta, onde crianças perdiam-se das mães e gritar seria mais um grito: o largo da igreja estava frágil. E crepitava com as castanhas na fogueira. Sonolentas, obstinadas, as pessoas se empurravam com os cotovelos até fazerem parte do círculo silencioso que se formara em torno das chamas.
Uma vez junto do fogo, paravam e espiavam aver­melhadas.
As flamas apuravam os gestos, as enormes cabeças se mexiam mecânicas, suaves. Alguns componentes da procissão da tarde, ainda com as roupas sedosas e jus­tas, misturavam-se aos espectadores. Coroada de pape­lão uma menina insone sacudia os cachos — era sábado de noite. Sob o chapéu o rosto mal iluminado de Lucré­cia ora se tornava delicado, ora monstruoso. Ela espiava. A cara tinha uma atenção doce, sem malícia, os olhos escuros espiando as mutações do fogo, o chapéu com a flor.
[...]

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