Luminescência (trecho)

sábado, agosto 23, 2008

[...]Depois mantiveram-se quietos, de mãos dadas. Por um instante ela retirou a mão, acendeu um cigarro, passou-o para ele, e acendeu outro para si mesma — e depois tornou a pegar na sua mão. Logo ele apagou o cigarro. Estava escuro, como ela quisera, e eles calados. Nunca me sei como agora, sentia Lóri. Era um saber sem piedade nem alegria nem acusação, era uma constatação intraduzível em sentimentos separados uns dos outros e por isso mesmo sem nomes. Era um saber tão vasto e tranqüilo que "eu não sou eu", sentia ela. E era também o mínimo, pois tratava-se, ao mesmo tempo, de um macrocosmo e de um microcosmo. Eu me sei assim como a larva se transmuta em crisálida: esta é minha vida entre vegetal e animal. Ela era tão completa como o Deus: só que Este tinha uma ignorância sábia e perfeita que O guiava e ao Universo. Saber-se a si mesma era sobrenatural. Mas o Deus era natural. Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da palavra e não podia explicar o que sentia ou o que pensava, além de que pensava quase sem palavras.
Ela adivinhou que ele quase adormecia, e então despregou devagar sua mão da dele. Ele sentiu logo a falta de contato e disse entre acordado e dormindo:
— É porque eu te amo.
Então ela, em voz baixa para não despertá-lo de todo, disse pela primeira vez na sua vida:
— É porque te amo.
Grande paz tomou-a por ter enfim dito. Sem medo de acordá-lo e sem medo da resposta, perguntou:
— Escute, você ainda vai me querer?
— Mais do que nunca, respondeu ele com voz calma e controlada. A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu iria atingir era a santidade do corpo.
Quanto a ela, lutara toda a sua vida contra a tendência ao devaneio, nunca deixando que ele a levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a corrente doce havia tirado parte de sua força vital. Agora, no silêncio em que ambos estavam, ela abriu suas portas, relaxou a alma e o corpo, e não soube quanto tempo se passara pois tinha-se entregue a um profundo e cego devaneio que o relógio da Glória não interrompia.
[...]

2 Clariceanos