O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Mas ela passaria os dias como uma visita na própria casa, não daria ordens, de nada cuidaria. Seu vestido florido e gasto vestia-a molemente, deixava entrever os longos seios gordos e aborrecidos. Ela já fora viva, com pequenas resoluções a cada minuto — brilhava seu olho fatigado e colérico. Assim vivera, casara e fizera Esmeralda nascer. E depois sobre-viera uma perda lenta, ela não abrangia com o olhar sua própria vida, embora seu corpo ainda continuasse a viver separado dos outros corpos. Preguiçosa, cansada e vaga, Daniel nascera e depois Virgínia, formados na parte inferior de seu corpo, incontroláveis — um pouco magros, cabelu­dos, os olhos até bonitos. Apegava-se a Esmeralda como ao resto de sua última existência, daquele tempo em que respirava para a frente dizendo: vou ter uma filha, meu marido vai comprar um grupo estofado, hoje é segunda-feira... Do tempo de solteira guardaria com amor uma camisola fina pelo uso como se a época sem homem e sem filhos fosse gloriosa. Assim defendia-se do marido, de Virgínia e de Daniel — os olhos piscan­do. O marido aos poucos impusera certa espécie de silêncio com seu corpo astuto e quieto. E aos poucos, depois do auge da proibição de compras e gastos, ela soubera numa alegria remoída, num dos maiores motivos de sua vida, que não vivia no seu próprio lar, mas no do marido, noda velha sogra. Sim, sim; antes ligava-se por meio de alegres fios ao que sucedia e agora os fios engrossavam pegajosos ou rompiam-se e ela se chocava bruscamente com as coisas. Tudo era tão irremediável, e ela vivia tão segregada, mas tão segregada, Maria — dirigia-se em pensamento a uma amiguinha da escola, perdida de vista. Simplesmente continuava, Maria. Olhava para Daniel e Virgínia, calmamente surpresa e altiva; eles haviam nascido. Até o parto fora fácil, ela não podia recordar mesmo a dor, sua parte inferior era bem sadia, pensava confusamente lançando um rápido olhar a si própria; não se ligavam ao seu passado. Dizia fraca­mente: come, Virgínia... — e estacava Virgínia... Nem fora ela quem esco­lhera o nome, Maria. Gostava dos apelidos brilhantes e irônicos como quem se abana com um leque recusando: Esmeralda, dois abanos rápi­dos... E a menina, como um galho, crescia sem ela ter decorado suas feições anteriores, sempre nova, estranha e séria, cocando a cabeça suja, tendo sono, pouco apetite, desenhando tolices em folhas de papel. Sim, a mãe não comia muito mas seu modo abandonado de estar à mesa dava a impressão de que chafurdava na comida. Quase nada fazia mas de algum modo parecia sentir-se tão enrolada na sua própria vida que mal poderia desvencilhar um braço e acenar sequer. Vendo-a largada so­bre a mesa; seu pai mastigando de olhos fixos; Esmeralda aguda, rígida e ávida dizendo: por onde passear?! por esses pântanos?!; Daniel escure­cer-se orgulhoso e quase estupidificado de tanto poder contido; e, ao fe­char os olhos, vendo em si mesma uma pequena sensação cerrada, ale­gríssima, firme misteriosa e indefinida, Virgínia jamais saberia que se inda­gava se uma qualidade numa pessoa excluía a possibilidade de outras, se o que havia dentro do corpo era bastante vivo e estranho a ponto de ser também o seu contrário. Quanto a si própria ela não sabia sequer adivinhar o que podia e o que não podia, o que conseguiria apenas com um bater de pálpebras e o que jamais obteria, mesmo cedendo a vida. Mas a si própria concedia o privilégio de não exigir gestos e palavras para se manifestar. Sentia que embora sem um pensamento, um desejo ou uma lembrança, ela era imponderavelmente aquilo que ela era e que con­sistia Deus sabe em quê.

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