O Lustre (trecho)

terça-feira, janeiro 13, 2009

Mas às vezes era tão rápida a sua vida. Luzes caminham em direção, Virgínia espia o céu, as cores brilham sob o mar. Virgínia caminha sem direção, a claridade é o ar, Virgínia respira claridade, folhas tremem sem saber, Virgínia não pensa, as luzes caminham sem direção, Virgínia espia o céu... As vezes era tão rápida a sua vida. Sua pequena cabeça de menina tonteava, ela fitava o campo à sua frente, espiava Granja Quieta já perdida na distância e olhava sem procurar entender. Em Brejo Alto não havia mar, porém uma pessoa podia olhar rapidamente para a extensa campina, fechar logo os olhos, apertar o próprio coração e como um filho, como um filho nascendo, sentir o cheiro docemente podre do mar. E mesmo que nesse instante o dia fosse duro e novo, as plantas secas de poeira, nuvens vermelhas e quentes de verão, os girassóis ásperos sacudindo-se no final do grosso talo contra o espaço, mesmo que não houvesse a feliz umidade das terras próximas às águas... uma vez um pássaro desabrochou da campina para o ar em vôo súbito, fez o coração bater depressa num susto pálido. E isso era livre e leve como se alguém andasse ao longo da praia. Ela nunca estivera perto do mar mas sabia como era o mar, nem forçava sua vida a exprimi-lo em pensamento, ela sabia, isso bastava. Quando menos se esperava chegava a noite, a coruja piava, Daniel podia de um instante para outro chamá-la a passear, alguém podia aparecer à porta dando algum recado, ela e Daniel corriam para saber o quê, a criada podia adoecer, ela mesma de repente acordar uma vez mais tarde — ela era tão finalmente simples naquele tempo. Não havia o inesperado e o milagre era o movimento revelado das coisas; que brotasse uma rosa em seu corpo, Virgínia a colheria com cuidado e com ela enfeitaria os cabelos sem sorrir. Havia certa alegria admirada e tênue sem notas cômi­cas — aonde? ah, uma cor, as plantas frias que pareciam destilar sons pequenos, vagos e claros no ar, diminutos sopros tremulamente vivos. Sua vida era minuciosa mas ao mesmo tempo ela vivia apenas um só traço esboçado sem força e sem fim, raso e estarrecido como o vestígio de outra vida; e o mais que poderia fazer era seguir cautelosamente os seus vislumbres. Será que todo o mundo sabe o que eu sei? indagava-se com o ar obstinado e sem inteligência que era um sinal comum da família, a cabeça inclinada. Parava um instante à borda do campo e imobilizava-se à espera atentando para suas próprias possibilidades. Um longo minuto se desenrolava, da mesma cor e no mesmo plano com um ponto saindo fora de si em linha reta e vagarosa. Enquanto ele durava tudo o que existia fora dela era visto apenas pelos seus olhos numa constatação límpi­da e curiosa. Mas de um momento para outro, sem nenhum aviso, ela estremecia delicadamente recolhendo de uma só vez os movimentos contidos nas coisas ao seu redor. Instantaneamente transmitia seus próprios movimentos para o exterior em mistura com a carga recebida; em breve no ar do campo havia mais um elemento que ela criava emitindo com os pequenos sorrisos mudos sua própria força. Avançava e penetrava livre­mente pelo capinzal molhado, as pernas estreitas umedeciam-se.

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