A Maçã no Escuro

sexta-feira, junho 22, 2012

Primeira parte: Como se faz um homem
Oito


Logo nos primeiros dias sentiu-se que havia um homem no sítio. E também se poderia adivinhar que quem mandava era uma mulher: pois apesar da ameaça de seca e das necessidades fundamentais daquela tentativa pobre de fazenda, o que de re­pente mais preocupava Vitória era a aparência do sítio. Como se até a vinda do homem ela não tivesse percebido o desmazelo das terras, encarniçava-se agora em transformá-las. Parecia ter à frente a data certa de uma festa antes da qual tudo deveria estar pronto. Uma febre de precisão a tomara. E as minúcias a que descia lembravam uma mosca se lavando. Na manhã alta, eis que ela apontava a cerca torta. E a força calma do homem desentortava a cerca. De muito longe Francisco, cismarento e céptico, viu a mulher apontando a desordem dos raros canteiros — e sorrindo viu que em silêncio Martim cavava, limpava, po­dava. Entre Martim e Vitória estabelecera-se uma muda relação já mecanizada e em pleno funcionamento: constituída da coin­cidência da mulher querer mandar e dele aquiescer em obedecer. Com avidez, a mulher era dona. E alguma coisa nela se intensi­ficara: a feliz severidade com que ela agora pisava sobre o que era seu, disfarçando a glória da posse com um olhar desafiador para as nuvens que passavam.
— E o curral? interrogou-o um dia atenta, o senhor nunca limpou o curral! disse-lhe impaciente, com aquele piscar de olhos de quem já não sabia o que queria; mas o tempo urgia.
Foi pois assim que Martim — como se estivesse copiando no seu trabalho de se tornar concreto uma evolução fatal cujo rasto ele sentia às apalpadelas — foi assim que o novo e confuso passo do homem foi sair uma manhã de seu reinado no terreno para a meia-luz do curral onde as vacas eram mais difíceis que as plantas.
Seu contato com as vacas foi um esforço penoso. A luz do curral era diferente da luz de fora a ponto de estabelecer-se na porta um vago limiar. Onde o homem parou. Habituado a nú­meros, ele recuava à desordem. É que dentro era uma atmosfera de entranhas e um sonho difícil cheio de moscas. E só Deus não tem nojo. No limiar, pois, ele parou sem vontade.
A névoa evolava-se dos bichos e os envolvia lenta. Ele olhou mais no fundo. Na imundície penumbrosa havia algo de oficina e de concentração como se daquele enleio informe fosse aos poucos se apontando concreta mais uma forma. O cheiro cru era o de matéria-prima desperdiçada. Ali se faziam vacas. Por nojo, o homem que repentinamente se tornara de novo abstrato como uma unha, quis recuar; enxugou com o dorso da mão a boca seca como um médico diante de sua primeira ferida. No limiar do estábulo no entanto ele pareceu reconhecer a luz mortiça que se exalava do focinho dos bichos. Aquele homem já vira esse vapor de luz evolando-se de esgotos em certas ma­drugadas frias. E vira essa luz se emanar de lixo quente. Vira-a também como uma auréola em torno do amor de dois cachorros; e seu próprio hálito era essa mesma luz. Ali se faziam vacas profundas. Uma pessoa pouco corajosa poderia vomitar à fragrância imunda, e ao ver a atração que as moscas tinham por aquela chaga aberta, uma pessoa limpa podia se sentir mal diante da tranqüilidade com que as vacas de pé molhavam pesa­das o chão. Martim era essa pessoa pouco corajosa que nunca tinha posto mãos na parte íntima de um curral. No entanto, embora desviando os olhos, ele a contragosto pareceu entender que as coisas se tivessem arranjado de modo a que num estábulo um dia tivesse nascido um menino. Pois estava certo aquele grande cheiro de matéria. Só que Martim ainda não estava pre­parado para tal avanço espiritual. Mais que temor, era um pudor. Ê hesitou à porta, pálido e ofendido como uma criança ao lhe ser revelada de chofre a raiz da vida.
Então disfarçou sua covardia com uma súbita revolta: res­sentia-se por Vitória tê-lo empurrado do silêncio das plantas para aquele lugar. Onde, com repugnância e curiosidade, ele inesperadamente se lembrou de que houve uma morta época em que répteis enormes tinham asas. É que ali uma pessoa não escapava de certos pensamentos. Ali ele não escaparia de sentir, com horror e alegria impessoal, que as coisas se cumprem.
Será por acaso isso o que lhe revolveu o estômago, ou ape­nas o cheiro morno? Não se sabe. No entanto bastar-lhe-ia um passo para trás, e ele se encontraria em plena fragrância da manhã que já é coisa aperfeiçoada nas menores folhas e nas menores pedras, e é trabalho acabado e sem fissuras — e que uma pessoa pode olhar sem nenhum perigo porque não tem por onde entrar e perder-se. Bastar-lhe-ia um passo para trás.
Ele então deu um passo para a frente. E ofuscado, estacou. No começo nada viu, como quando se entra numa grota. Mas as vacas habituadas à obscuridade haviam percebido o estranho. E ele sentiu no corpo todo que seu corpo estava sendo experimen­tado pelas vacas: estas começaram a mugir devagar e moviam as patas sem ao menos olhá-lo — com aquela falta de necessi­dade de ver para saber que os animais têm, como se já tivessem atravessado a infinita extensão da própria subjetividade a ponto de alcançarem o outro lado: a perfeita objetividade que não precisa mais ser demonstrada. Enquanto ele, no curral, se redu­zira ao fraco homem: essa coisa dúbia que nunca foi de uma margem a outra.
Num suspiro resignado, pareceu ao homem lento que “não olhar” também seria o seu único modo de entrar em contato com os bichos. Imitando as vacas, num mimetismo quase calculado, ele ali em pé não olhou para parte alguma, tentando ele também dispensar a visão direta. E numa inteligência forçada pela própria inferioridade de sua situação deixou-se ficar sub­misso e atento. Depois, por um altruísmo de identificação, foi que ele quase tomou a forma de um dos bichos. E foi assim fazendo que, com certa surpresa, inesperadamente pareceu en­tender como é uma vaca.
Tendo de algum modo entendido, uma pesada astúcia fez com que ele, agora bem imóvel, se deixasse ser conhecido por elas. Sem que um olhar fosse trocado, agüentou de dentes aper­tados que as vacas o conhecessem intoleravelmente devagar como se mãos percorressem o seu segredo. Foi com mal-estar que sentiu as vacas escolhendo nele apenas a parte delas que havia nele; assim como um ladrão veria nele a parte que ele, Martim, tinha de avidez de roubo, e assim como uma mulher queria dele o que já uma criança não entenderia. Só que as vacas escolhiam nele algo que ele próprio não conhecia — e que foi pouco a pouco se criando.
Foi um grande esforço, o do homem. Nunca, até então, ele se tornara tanto uma presença. Materializar-se para as vacas foi um grande trabalho íntimo de concretização. A unha final­mente doía.
Por um momento de falta de fé, o homem teve a certeza de que ia perder e que jamais conseguiria a ascensão ao curral. Pois um ou outro largo olhar passava sem pressa por ele, seguido de um mugido longo de cabeça pesada erguida para o alto: repu-diando-o. No meio do cheiro intenso do curral, elas percebiam o seu cheiro ácido de pessoas.
Mas também é verdade que, a essa altura, a alegria de viver já o tomara, essa alegria fina que às vezes nos toma no meio da própria vida como se a mesma nota de música se intensificasse: essa alegria o tomara e o guiava instintivamente na luta. Martim já não saberia se estava apenas obedecendo à ordem informulada com que as vacas terminam por forçar um vaqueiro a um modo peculiar de olhar e de ficar em pé. Ou se, na verdade, era ele próprio quem estava buscando, em doloroso esforço espiri­tual, libertar-se enfim do reinado dos ratos e das plantas — e alcançar a respiração misteriosa de bichos maiores.
O que apenas sabia — pois já alcançara a mesma inteli­gência somente essencial de uma vaca — o que apenas sabia era uma lei simples. Que não devia brutalizar-lhes o ritmo próprio, e que lhes devia dar tempo, o tempo delas. Que era um tempo inteiramente escuro, e elas ruminavam feno com baba. Aos pou­cos também este se tornou o tempo do homem. Redondo, lento, incontável por um calendário, pois assim é que uma vaca atraves­sa um campo.
Então — já que as coisas tendem a chegar a uma conclusão e a descansar num estágio — o curral enfim começou a serenar. O calor do corpo do homem e dos bichos se confundiu na mesma mornidão amoniacada do ar. O silêncio do homem automatica­mente se transformara. Ele enfim ganhara uma dimensão que uma planta não tem. E as vacas, apaziguadas com a justificação que Martim lhes dera, deixaram de se ocupar dele.
Em júbilo trêmulo, o homem sentiu que alguma coisa enfim acontecera. Deu-lhe então uma aflição intensa como quan­do se é feliz e não se tem em que aplicar a felicidade, e se olha ao redor e não há como dar esse instante de felicidade — o que até agora tinha acontecido com mais freqüência àquele homem em noites de sábado.
Alguma coisa tinha acontecido. E embora os elos continuas­sem a lhe escapar, ele tinha enfim alguma coisa na mão e seu peito se inflou de sutil vitória. Martim respirou profundamente. Pertencia agora ao curral.
E enfim pôde olhá-lo como uma vaca o veria.
O curral era um lugar quente e bom que pulsava como uma veia grossa. Era à base dessa larga veia que homens e bichos tinham filhos. Martim suspirou cansado com o enorme esforço: acabara de “descortinar”. Era a partir dessa veia larga que um grande animal atravessava um riacho espalhando água que brilha — o que o homem já havia visto, tendo porém tido apenas aquele mínimo aviso de beleza que agora repousava em base profunda. Era por causa dessa pulsação que as montanhas eram longe e altas. Era por isso que as vacas molhavam o chão com um barulho forte. Era à base de um curral que o tempo é indefinidamente substituído pelo tempo. Era por causa desse latejar que levas migratórias saíram de zonas frias para as tem­peradas. Aquele — aquele era um lugar quente que pulsava.
Tudo isso o homem talvez tivesse sentido pois ficou tão satisfeito que cuspiu no chão. Depois do quê, com o coração cheio de pesado vigor, escondendo a emoção, estendeu a mão e deu algumas palmadas no corpo enxuto de uma vaca. Uma grande confusão tranqüila começara entre ele e os animais.
— O senhor precisa dar terra ao milho! disse-lhe Vitória irritada.
Ele então dava terra ao milho. Mas as vacas esperavam-no, e ele sabia.

2 Clariceanos