A Maçã no Escuro

quinta-feira, janeiro 03, 2013

Primeira parte: Como se faz um homem

Dez

Quanto a Martim, ele tinha tempo. Na verdade parecia ter descoberto o tempo. No fim do dia largava o trabalho no campo e ia ao curral. Com a mesma serena avidez com que ia antes ao terreno do depósito. E livre enfim da iminência de ordens de Vitória, livre da presença cada vez mais assediante de Ermelinda — o homem cada dia retomava no curral o instante interrompido do dia anterior, unindo num tema à parte os instantes esparsos que passava com as vacas, e deles fazendo a única seqüência. “Como eu ia sentindo...”, parecia ele pensar ao entrar no curral — e continuava o que interrompera. O escuro calor das vacas enchia o ar do curral. E como se alguma coisa que nenhuma pessoa e nenhuma consciência lhe pudesse dar, ali no curral lhe fosse dado — ele o recebia.

O cheiro sufocante era o do sangue vagaroso nos corpos dos bichos. Não mais o intenso sono das plantas, não mais a mes-quinha prudência em sobreviver que havia nos ratos ariscos. Mas as vacas já começavam a inquietá-lo um pouco. Um dia, por exemplo, ele acordou e abriu a porta do depósito para a primeira luz. E como o dia lhe pareceu dado, assim ele o recebeu. Mas — mas já quis, pela primeira vez, fazer alguma coisa dele. É que à porta do depósito, ele pela primeira vez estava precisando de uma experiência mais funda — mesmo que não a pudesse jamais partilhar com as vacas. Inquieto, ele estava se destacando delas. Era um risco, e uma primeira audá¬cia. Então, olhando o modo como o campo era grande e cheio de luz, ele — ele se arriscou e teve a experiência mais funda. Piscou várias vezes, quieto. Era assim que aquele homem estava crescendo como uma coisa que rolando se avoluma. Crescia calmo, oco, indireto, a avançar paciente. Não olhara uma vez diretamente para a mulata. Mas ela ria. E uma força pacífica acordara nele. Era um poder — ele bem se lembrava ainda. Alerta, sem nenhum plano, ele esperou dia após dia pelo momento em que faria a mulata deixar de rir. Tanto a mulata como a criança o observavam dissimuladas de longe sem se aproximar. Quanto à criança, Martim evitava-a, confuso, evasivo. Mas a mulher ria muito. Na verdade pode-se dizer que ria demais. Sem um pensamento, ele sabia o que significava o riso. E às vezes era como se o riso fosse um mugido: ele então erguia a cabeça, atordoado, chamado, poderoso. Mas aguardava. Como se a paciência fizesse parte do desejo, ele aguardava sem se apressar. A mulata era uma larga natureza, tão larga quanto o seu riso — ela ria antes de saber de quê.

A vida se arranjara nela de um modo escuro e doce, e ela ria de alguma coisa; talvez ti¬vesse prazer nessa coisa. Embora essa mesma coisa às vezes se enovelasse nela em cólera como um cachorro rosna. Era pessoa que errava sem pecar. As bofetadas que dava na filha eram quase de alegria, e revigoravam-na toda. O homem obser- vou, sem concluir, que era muito comum ela começar a cantar depois de bater na menina. A menina se esquivava aos tapas, aprendendo sem ressentimento que assim era, e que mãe era aquela força que ria alto e que sem vingança batia, e ser filha era pertencer àquela mãe onde o vigor ria. O homem fingia estar interessado no “trabalho, só para disfarçar. É que uma pessoa podia se compreender toda na mulata. O homem encon¬trou nela um passado que, se não era seu, lhe servia. O que ela suscitava num homem era ele próprio. Martim mal a olhava, e sabia que ela estava ali. Com ela se podia tratar de homem para homem, só que para chegar a isso ela era uma mulher. Dois dias depois, em vez de ir ao curral, ele enfim se apro¬ximou da mulher que lavava roupa. E ficou de pé sem olhá-la. E sem olhá-lo, ela riu. Ele quebrou meticulosamente um graveto na mão, e sem fitá-la sabia que ela era moça. Seus cabelos tinham cachos duros, compridos. Como Martim era pessoa que gostava imediatamente do que precisava, ele a achou logo bonita. Afinal jogou o graveto longe e olhou-a de frente: seria largá-la ou pegá-la. Ele a pegou sem pressa como um dia pegara um passarinho. — Você é forte como um touro, riu a mulher. Ele estava concentrado. Segurando seu ombro, o homem podia sentir os ossos pequenos e, mais acima, os tendões e as fibras embaixo da carne fina: ela era um bicho novo, ele calculou sua idade apalpando-a. Sentia o calor que vinha dela, e assim devia ser; corpo a corpo com o pulso mais íntimo do desconhecido. Já era escuro quando seus gestos despertaram a moça nova.

O homem acendeu a lamparina do depósito e ela deu um pe¬queno grito de raiva. O que quer que fosse se enroscara em cólera. Ele a olhou curioso. Ela vibrava de raiva, Deus sabe por quê. E ele ficou sozinho, à porta do depósito. Martim estava muito surpreendido porque antigamente ele costumava saber de tudo. E agora — como fato no entanto muito mais concreto — ele não sabia de nada. Ele que havia crescido um homem claro, e ao redor dele tudo costumava ser visível. Fora pessoa que soubera respostas, antigamente ele era sem dor. A claridade de que vivera fizera com que ele tivesse sido capaz de executar trabalho com números com uma paciência que não se alterava; e, nu por dentro, as roupas lhe assentavam bem. Esperto e elegante. Mas agora, tirada das coisas a camada de palavras, agora que perdera a linguagem, estava enfim em pé na calma profundidade do mistério. Na porta do depósito, pois, revitalizado pela grande ignorância, permaneceu de pé no escuro. Já era quase noite. É que ele acabara de aprender isso com aquela mulher: a ficar de pé tendo um corpo. Então os dias começaram a passar. Mas se sua língua uma vez engordara demais na boca para exprimir, e se na sua cabeça não circulava ar para que o pensa¬mento pudesse ser mais que ânsia — agora atrás de toda clarida¬de havia a escuridão. E era dela que vinha a escura flama de sua vida. Se um homem tocasse uma vez a escuridão, oferecen¬do-lhe em troca a própria escuridão — e ele a tocara — então os atos perderiam o erro, ele poderia talvez um dia voltar para a cidade e se sentar num restaurante com grande harmonia.

Ou escovar os dentes sem se comprometer. Um homem tinha uma vez que desistir. E só então poderia viver, como ele agora vivia, na latência das coisas. E então, talvez porque um dia se seguisse ao outro, algo começou a acontecer devagar, envolvente, grande, apesar dos elos lhe escaparem. É que vivendo ali era como se aquele ho¬mem já não contasse mais a vida em dias nem em anos. Mas em espirais tão largas que ele já não poderia vê-las assim como não via a larga linha de curvatura da terra. Havia algo que era essência gradual e não para se comer de uma vez. Foi assim que a vida de Martim começou a ultrapassá-lo: os dias eram grandes, bonitos, e sua vida era muito maior que ele. E ele mesmo, aos poucos, tornou-se mais do que um homem sozinho. Fizera-se um desgastamento de seus conheci¬mentos anteriores, e, quanto a palavras, ele meramente as co¬nhecia como pessoa que tivesse uma vez adoecido delas. E se tivesse curado. “Afinal seu crime tinha apenas o tamanho de um fato” — e o que ele queria dizer com isso, não sabia. Também recomeçou a compreender as mulheres. Não as compreendia de um modo pessoal, como se ele fosse o dono de seu próprio nome. Mas pareceu entender para que nascem mulheres quando uma pessoa é um homem. E isso foi um tranqüilo sangue forte que entrava e saía ritmado no seu peito. Tratando das vacas, o desejo de ter mulheres renasceu com calma. Ele o reconheceu logo: era uma espécie de solidão. Como se seu corpo por si mesmo não bastasse.

Era o desejo, sim, ele bem se lembrou. Lembrou-se de que mulher é mais que o amigo de um homem, mulher era o próprio corpo do homem. Com um sorriso um pouco doloroso, acariciou então o couro feminino da vaca e olhou em torno: o mundo era masculino e feminino. Esse modo de ver lhe deu um profundo contentamento físico, a quieta e contida excitação física que ele tinha cada vez que “descortinava”. Uma pessoa tem prazeres altamente espirituais de que ninguém suspeita, a vida dos outros parece sempre vasta, mas a pessoa tem os seus prazeres. É verdade que as vidas individuais ele não as entendia ainda: as duas primas lhe pareciam ao mesmo tempo chatas e abstratas, nem ele suspeitava que sentido havia na vida daquelas duas mulheres, e não lhe ocorrera que entendê-las seria um modo de contato. As vidas individuais ele não as entendia. Mas já ao olhá-las em conjunto — a mulata que fora pesadamente sua e que agora enchia o balde com água cantante, Francisco serrando madeira, Vitória corajosa, Ermelinda espreitando, e a fumaça saindo alta da cozinha — isso, isso ele já pareceu entender como conjunto. E foi como se um calor se evolasse do esforço de todos, e foi como se aquele homem estivesse enfim apren¬dendo que a noite desce e que o dia renasce e que depois a noite vem. E assim era. Seu corpo, nesse entendimento, ficou bom, sem necessidade do erro que seria a maldade. E assim como as vacas contavam quietas com a existência de outras vacas — o homem se envolveu pelo calor indireto dos outros. E mais: às vezes mesmo era como se, olhando, ele fosse o dono de uma grande usina, e o barulho e a fumaça fossem o sinal de um caminhar progressivo. Em que direção? O homem não se per¬guntou. Embora sentisse — com a mesma vaga inquietação com que gradualmente a seca se aproximava — que ele não estava longe da pergunta, por enquanto imatura. Enquanto isso, a seca se aproximava nas espigas de milho. — São dias bonitos, disse Vitória apreensiva, protegendo os olhos com a mão.

Eram dias grandes, claros, e, enquanto duravam, ameaçadoramente infinitos. — São lindos! exclamou Ermelinda, até já tomei o meu calmante! As lagartixas, atraídas pela promessa de fulguração e glória, apareciam em maior abundância, surgidas não se sabia de onde. Estalavam na terra seca e crepitavam. Vitória olhou os corpos áridos que se multiplicavam, examinou de perto algumas folhas que já se enrolavam nos bordos, levantou o rosto inquisitivo para um céu puro e deserto. No campo, o sol cheio de borboletas empoeiradas: — Dias bonitos assim precedem seca. — Ah, fez Ermelinda com a mão no coração, são tão bonitos que não se sabe o que fazer com eles. E Martim? o cheiro de terra arrebentava-se sob a enxada de Martim. Os grãos se esfarelavam, o cheiro de capim à luz, o cheiro de certas ervas secretas que o calor fazia exalar, as ervas confusas que davam no seu entrelaçamento sombra para algum reino mais obscuro que o visível: Martim trabalhava, a enxada subia e descia, subia e descia. Um galho na sombra de súbito se despregou de outro galho, sobressaltou a abelha, fazendo-a voar até se perder na distância da claridade... seu vôo deixou pressentir um mundo feito de lonjuras e repercussões, aquele mundo profundo que parecia bastar ao claro-escuro de uma vaca e que basta a um homem que levanta e abaixa uma enxada. O suor era uma das melhores coisas que já lhe tinham acontecido: Martim levantava e abaixava a enxada. Essa coisa sem nome que é o cheiro da terra incomodando quente e lem¬brando com insistência, quem sabe por quê, que se nasceu para amar, e então não se entende. Foi quando a abelha voltou iluminada. O que fez o homem parar de trabalhar e enxugar vagarosamente o suor, com os olhos franzidos pela claridade — por essa claridade que pouco a pouco já estava começando a ser também de Martim. Seu esforço de entender foi rude, encabulado: — O campo parece uma jóia, disse então enrubescendo violentamente. Olhou depois inquieto ao redor como se alguém o tivesse visto fazer uma coisa feia. Parecia um homem que sem jeito quisesse dar uma flor, e ficasse com a flor na mão. — O campo parece uma jóia coisa nenhuma! disse furio¬so.

A abelha então se emaranhou em ervas como em cabelos, as formigas em longa fila ondeante — e tudo isso começava a ser de Martim. Esse era o abismo sem fundo em que ele se lançara na sua passagem das plantas para o futuro mais largo daquele cavalão negro que, naquele mesmo instante, passou ao longe puxando o arado. E no arado Francisco sentado ereto, no silencioso esforço da atenção. Tudo isso estava começando a ser de Martim, porque uma pessoa olha e vê. As vacas babavam, a abelha cada vez mais minuciosa azucrinava o ar se aproximando mais e mais de um centro imaginário. E o grito de Francisco deu de repente dimensão a distância. — Eu precisava lhe falar, disse-lhe nesse instante Ermelinda. O homem não interrompeu o movimento da enxada na terra. — O senhor podia pedir a Vitória para se plantar sempre-viva, continuou com um sorriso faceiro. — Peça a Dona Vitória, respondeu o homem sem olhá-la. — Aí é que está, tenho medo dela. Aliás — disse de re¬pente íntima — o senhor também precisa tomar cuidado. Não me interprete mal: ela é muito boa, mas é tão severa. Ela é muito nervosa. Como o rosto do homem continuasse inclinado para a cova, a moça também se inclinou e de baixo para cima tentou adivinhar a sua expressão: — Imagine, disse sempre abaixada e falando mais alto pois não tinha certeza se ele tomara conhecimento de sua pre¬sença, imagine, disse quase berrando, que uma vez ela me pisou, viu? Sem interromper o trabalho, ele olhou-a rapidamente. — Depois ela disse que foi sem querer, acrescentou Ermelinda em tom mais baixo, agora que estava segura de que o homem a notara. Talvez tenha sido mesmo sem querer, acres¬centou já hesitante em continuar a mentir pois ele finalmente a olhara. — Eu disse que ela disse que foi sem querer! repetiu ao vê-lo de novo desatento, mas acho que não é verdade! que ela me pisou tenho certeza absoluta! gritou-lhe atenta, espreitando a ressonância de suas palavras no rosto do homem. Mas as tentativas malogradas não desanimaram Ermelinda: “era assim mesmo”, pensava, pois “o tempo ainda não era propício”. Qual seria o tempo propício, não saberia dizer. Talvez em pequena tivesse ouvido falar nas épocas em que a lua atinge a sua plenitude.

Talvez também soubesse de como bichos precisam de um mínimo de segurança ao estarem juntos para ao menos terem a garantia primária de não serem interrom¬pidos. Talvez tivesse ouvido mais histórias do que pudera en¬tender — e o que lhe restara, inquietantemente incompleta, fosse a noção de um tempo propício. Oh, seus planos eram vagos, muito vagos. Ela nem sequer tinha plano: seus planos eram tão vagos que ela entrefechou os olhos encabulada, e sorriu. Se por acaso seus planos se tornavam por um instante mais claros, sinceramente espantada, ela se ofendia. É que andava muito suscetível.

Quando é que Martim começou finalmente a individualizá-la? Era quase feia, embora graciosa. Os cílios curtos e muito negros delineavam olhos que eram percebidos mesmo a distân¬cia, no meio da claridade de uma pele onde nem a boca tomara cor. Os olhos piscavam sempre, sabidos ou talvez aflitos, como se a moça estivesse sempre a calcular a distância entre ela própria e as coisas. Só os olhos eram positivos. Os outros traços eram tanto mais indecisos quanto se podia imaginar que eles poderiam se desmanchar para formar novo conjunto, tão prudente em não se definir quanto o primeiro. Era uma adolescente envelhecida e, se houvera pesares, não teriam sido de molde a lhe dar rugas ou durezas, mas a afiná-la e a apagá-la. Os rápidos instantes esparsos em que o homem a olhara de frente tinham sido inúteis, pois ele não havia encontrado apoio em nenhum ponto rememorável, mais feio ou mais bonito. Embora, em certos momentos em que ficava desprotegida, lhe aparecesse no rosto uma certa franqueza expectante que se lhe dava beleza era a de uma cara paciente de cão. Seu rosto era então visto em toda a sua nudez como a de um cego.

Foi essa cara fraca, auditiva e confiante — sem as mentiras de expressão com que a moça se enfeitava tanto — que o homem terminou enfim por gravar. E ele passou a “não pensar nela”, como forma de pensar. — Quando eu era casada, eu tinha tudo, não me faltava nada! retornou ela no dia seguinte, perseverantemente cercando-o e abrindo a cesta de ovos duros para fazer piquenique enquan¬to ele trabalhava. Falando sem parar, a moça viu de novo aquela cara de duras rugas, e de novo foi tocada pela firmeza do homem en¬quanto o vento parecia tentar em vão desgastá-lo. E, quem sabe, se ela se agarrasse a ele, como que o vento também não a sacudiria. Então a moça se encheu de uma esperança tão forte, e maligna que sem parar de falar tirou da cesta o calmante, engoliu com dificuldade a pílula seca: — Quanto tempo mesmo o senhor fica aqui? perguntou-lhe. E quando ele disse que não sabia, de novo a pressa vazia e dolorosa a turbilhonou, o tempo era curto, o tempo era curto, ela não sabia para quê, só sabia que tinha que se apressar. Então começou a falar com tal volubilidade que o homem sentiu seu trabalho tornar-se suave como se as suas marteladas tivessem agora um contraponto, e a moça fosse a repercussão de um homem enchendo a distância. Martim então olhou para o sol e cuspiu longe com orgulho. Ermelinda abaixou os olhos com pudor.

2 Clariceanos