A Maçã no Escuro

quinta-feira, maio 23, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Um


Mas nessa mesma noite, andando excitado de um lado para outro dentro da pequenez do depósito, Martim mal se conteve com o que ganhara. Era a alegria. Não sabia o que fazer de si como se tivesse uma notícia e não houvesse a quem dá-la. Estava muito contente de ser uma pessoa, este era um dos grandes pra­zeres da vida. No entanto, inconsolável, parecia-lhe que jamais seria indenizado.
E pela primeira vez desde que fugira tinha necessidade de se comunicar. Sentou-se no bordo da cama, a cabeça feliz entre as mãos. Não sabia por onde começar a pensar. Então lembrou-se de seu filho que um dia dissera na hora do jantar: não quero esta comida! A mãe retrucara: que comida você quer? O me­nino terminara dizendo com o doloroso espanto da descoberta:
  Nenhuma!
Ele, Martim, então lhe dissera:
  É muito simples: se você não está com fome, não pre­cisa comer.
Mas a criança começara a chorar:
  Não estou com fome, não estou com fome. . .
E como o rádio também estava ligado, o homem gritara:
  Já lhe disse que se você não tem fome não precisa comer! por que então está chorando?
O menino respondera:
  Estou chorando porque não estou com fome.
  Prometo que amanhã você vai ter fome, prometo! dis­sera-lhe Martim perturbado, entrando por amor na verdade de uma criança.
Sentado na cama, com a cabeça entre as mãos, Martim fechou os olhos rindo muito emocionado. Era a alegria. Sua alegria vinha de que ele estava com fome, e quando um homem tem fome ele se alegra. Afinal uma pessoa se mede pela sua fome — não existe outro modo de se calcular. E a verdade é que na encosta a grande carência lhe renascera. Era estranho que ele não tivesse comida mas que se rejubilasse com a fome. Com o coração batendo de grande fome, Martim se deitou. Ouvia seu coração pedir, e riu alto, bestial, desamparado.
No dia seguinte Ermelinda cada vez mais sistemática voltou:
  O senhor pode pensar que sou doida, disse-lhe com o ar persistente dos cegos, mas tem um lugar dentro de mim onde vou quando quero dormir! ah, eu sei que isso é engraçado, mas é assim... Se esse lugar fosse perto, eu até podia dizer que ficava no canto esquerdo de minha cabeça — é que eu durmo deitada do lado esquerdo, explicou-lhe de passagem, lambendo os lábios — mas esse lugar é tão mais longe, é como se fosse muito depois que eu acabo. . . mas é ainda dentro de mim, sou eu ainda, entendeu?
Como eram os particulares detalhes de sua vida que a tor­navam, a seus próprios olhos, insubstituível por outra pessoa, ao descrever suas especialidades ela tentava com esforço provar ao homem que ela era ela mesma. Como Martim não a olhara, então arriscou-se ainda mais:
  É um lugar que fica depois de minha morte, disse afi­nal, e tornou-se de repente tão pálida que, levado a fitá-la por causa do silêncio inesperado da moça, ele deixou de sorrir sem saber por quê.
Mas Ermelinda bem sabia que ainda era cedo para deixar de mentir e deixar de encantá-lo. Sabia que era cedo para se mostrar a ele, e que poderia afugentá-lo se fosse verdadeira, as pessoas tinham tanto medo da verdade dos outros. Só por meios indiretos conseguiria. A idéia de que, se não o divertisse, ela o afugentaria, apavorava-a: logo agora que já ganhara tanto terreno a ponto de conseguir que ele a ouvisse, mesmo que não a olhasse! Então, receosa de ter ido adiante demais e de tê-lo espantado, ela riu muito e disse brincando:
  Sei que para ir a esse lugar aonde vou quando estou com sono, se toma a esquerda, é assim que eu consigo dormir, imagine! Às vezes, para não ficar nervosa, quero levar para o sono uma coisa comigo, uma coisa do dia, entende? um lenço para torcer na mão, um livro de missa, só para me dar seguran­ça e eu não ir sozinha, imagine só que bobinha que sou! disse com ternura, olhando-o bem fixo para ver se conseguira con­tagiá-lo com a ternura para consigo mesma. Mas não se pode levar coisa nenhuma ou alguém, senão não se vai. Parece um lugar só para se dormir ou para pensar. Eu, é claro, não quero nem gosto mesmo de voltar lá! Mas — disse desamparada — mas depois que a gente vai uma só vez, fica logo um vício. O senhor acredita — acrescentou gulosa — o senhor acredita que eu não consigo deixar de pensar no que penso? — mas não lhe disse no que pensava, e sentiu o prazer de quem se confessa à revelia de quem ouve, como se o roubasse enquanto ele dormia.
  O senhor por acaso consegue não pensar no que pensa? É, como se costuma dizer, uma obsessão! uma verdadeira obsessão!
  dizia tudo brincando, sem esquecer um instante que, num trabalho paciente e perfeito, devia sempre lisonjear o homem.
Mas sem também esquecer que tinha pressa. Ocorreu-lhe que, ao falar com ele, poderia sem querer deixar escapar o que ela era, e o homem então perceberia quanto ela precisava dele, e por isso não a quereria mais, como acontece com as pessoas. À simples possibilidade dele nunca vir a gostar dela, Ermelinda se arrepiou solitária, olhou os pássaros que voavam. Seu traba­lho junto ao homem foi sempre tão delicado, e exigiu tanta precisão, que ela não o saberia fazer se apenas o decidisse ou se lhe mandassem fazê-lo. Era um labor de infinita cautela, onde um passo mais e o homem jamais a amaria, onde um passo a mais e ela mesma talvez deixasse de amá-lo: ela protegia ambos contra o erro. E às vezes mais parecia proteger ambos contra a verdade.
  É como uma obsessão! Você acha que sou doida? per­guntou-lhe, pois ela sabia que vivia de uma idéia e que isso não era “normal”.
  Não.
  Mas as outras pessoas não parecem pensar que a mor­te. ..   — Ermelinda disfarçou depressa a palavra reveladora com um sorriso de faceirice. Não mesmo? indagou coquete, não sou doida, hein? Sou tão bobinha que o senhor nem pode ima­ginar!  disse-lhe como se lhe prometesse todo um futuro de atraente bobagem que ele perdia apenas porque queria.
  É doida porque fala, disse ele afinal, pesado.
  Ah, disse ela com o ar sabido de quem não se deixaria enganar, então já estou vendo tudo: você acha que sou doida! já vi tudo, você não me engana! disse toda risonha usando o “você” com intenção — mas seus olhos abertos estavam pen­sando em outra coisa.
Martim se lembrou de um homem que ele conhecera e que viajara sozinho durante muito tempo pelo interior e que, ao voltar, vivia falando sobre árvores e cobras e passarinhos, para o cansaço e a incompreensão de todos; até que o homem per­cebera que uma pessoa não fala sobre árvores e passarinhos e cobras, e parara de falar:
  Não, repetiu então olhando-a, e com um primeiro ca­rinho de curiosidade na voz, você não é doida. É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta — o homem parou e olhou-a, intrigado por ter falado tanto.
Ele nunca falara tanto, e o coração da moça começou a bater:
  Pois é, disse ela galante.
Com uma sabedoria instintiva, Ermelinda não demonstrou que notara o seu primeiro passo para ela, assim como não se dá um grito de alegria quando uma criança começa a andar para que esta não pare assustada por meses.
Quanto a ele, ele não percebia nada. Quanto a ele, aguar­dava com paciente ansiedade pelo momento de terminar o tra­balho.
Para ir — não ao terreno das plantas, não às vacas do curral — mas, com a incerta determinação de uma geléia viva, ir de novo à encosta para retomar cada dia o instante de sua formação do dia anterior. Onde ficava de pé, bastando-lhe estar de pé, sem saber o que fazer. Essa necessidade que uma pessoa tem de subir uma montanha — e olhar. Esse era o primeiro símbolo que ele tocara desde que saíra de casa: “subir uma montanha”. E neste obscuro ato ele se fecundava. Aquele lugar era um velho pensamento jamais formulado. Como se o pai de seu pai o tivesse aspirado. E como se da invenção de uma lenda antiga tivesse nascido aquela realidade. Aquele lugar já lhe tinha acontecido antes, não importava quando, talvez apenas em pro­messa e em invenção.
E só Deus sabe que Martim não sabia o que vinha fazer na encosta. Mas tanto é verdade que alguma coisa objetiva devia lhe estar acontecendo ali que — já que ele se habituara a reva­lidar sua própria natureza com o argumento final da natureza dos animais — que bastava ele se lembrar de como um boi fica de pé no morro. Olhando. Essa coisa objetiva como um ato: olhar. Às vezes também um cachorro olha, embora rápido e logo em seguida inquieto, pois um cachorro não tem tempo, ele precisa muito de carinho e é nervoso, e tem um sentimento aflito do tempo que passa, e tem nos olhos o peso de uma alma intransmissível, só o amor cura um cachorro. Mas acontece que aquele homem, por circunstâncias casuais, estava mais perto da natureza do boi, e olhava. Se é verdade que se lhe perguntassem para quê, não saberia responder, é também verdade que se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.
Oh, pode-se dizer que nada acontecia enquanto ele estava na encosta. E nem ele exigia ainda que algo acontecesse. Pare­cia bastar-lhe a tarde de luz rasgada, o ar nu e o espaço vazio. Até mesmo uma palavra pensada afundaria o ar. Ele se abstinha. Ali, existir já era uma ênfase. Como se já fossem uma audácia e um avanço uma pessoa estar de pé na claridade. E era como se ali Martim se tornasse o símbolo dele mesmo. Ele que, enfim, se encarnara em si próprio. Os passarinhos, escapulindo da luz, se mantinham dentro da escuridão dos galhos cheios. A claridade restava solitária, azul, fina. Era a tarde. E Martim olhava como se olhar fosse ser um homem. Ele gozava seu estado. Era uma generosidade do mundo para com ele. Rece­bia-a sem pejo. Pois, não se sabe por quê, ele não tinha mais vergonha.
Ao ponto de um dia, diante da claridade inóspita e sem nenhum sentido, ele ter enfim pensado, um pouco inquieto e avançando: “por Deus, se não criássemos um mundo, este mun­do apenas divino não nos receberia”. Foi quando começou a escurecer. Cachorros apareceram atentos ao longe. Os passari­nhos saíram da folhagem, e cada um se arriscou um pouco mais. Aos poucos o ar se adensou, os sentimentos começaram enfim a mostrar sua natureza pouco divina, um desejo profundamente confuso de ser amado misturou-se ao cheiro humano da noite, e um vago suor começou a porejar, espalhando seu cheiro bom e ruim de terra e de vacas e de rato e de axilas e de escuridão — esse furtivo modo como aos poucos tomamos conta da terra: tínhamos enfim criado um mundo e tínhamos lhe dado a nossa vontade. O máximo de claridade cedera à nossa habitada escuri­dão: seria isso talvez o que Martim cada dia aguardava ali em pé? Como se nesse vergar-se da claridade lhe ensinassem como se faz a união harmoniosa — não inteligível mas harmoniosa, não com uma finalidade mas harmoniosa — como se nesse ver­gar-se da claridade para a escuridão se fizesse enfim a união das plantas, das vacas e do homem que ele começara a ser. Cada vez, pois, que o dia se tornava noite, renovava-se o domínio do homem, e um passo era dado para a frente, às cegas, finalmente às cegas como é o avanço de uma pessoa no querer.
Martim não se indagou por que na encosta ele se comple­tava tão bem, ficando ele próprio harmonioso — ininteligível mas harmonioso — enquanto olhava a imortalidade do campo. Por enquanto isso lhe bastava. Um homem que andou muito tem o direito de ter um prazer inexplicável, harmonia apenas, mesmo sem entender — por enquanto sem entender. Pois, com tranqüila presunção, ele se dizia: “é cedo ainda”. Não era, porém, apenas presunção. É que agora ele aprendera a contar com o amadurecimento do tempo, assim como as vacas disso vivem taticamente. Ele agora parecia entender que não se podia brutalizar o tempo, e que o largo movimento deste era insubs­tituível por um movimento voluntário.
Assim, cada dia, quando se livrava das ordens de Vitória, ia esperar na encosta pela volta daquele instante quando, entor­pecido, se aproximara da fazenda pela primeira vez e pela pri­meira vez fora alertado. E de novo e de novo voltava. Repetir lhe parecia essencial. Cada vez que se repetia, algo se acres­centava.
Tanto que Martim já estava começando a se perturbar — ele era um homem, mas restava algo inquieto: que é que um homem faz?

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