A Maçã no Escuro

quinta-feira, maio 23, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Dois
 
Até que nessa tarde na encosta Martim começou a se jus­tificar. Chegara o duro tempo de explicação.
Ali, antes de prosseguir, ele devia ser inocente ou culpado. Ali ele tinha que saber se sua mãe, que jamais o entenderia se fosse viva, o amaria sem entendê-lo. Ali ele devia saber se o fantasma de seu pai lhe daria a mão sem espanto. Ali ele se julgaria — e dessa vez com a linguagem dos outros. Agora teria de chamar de crime o que fizera. O homem estremeceu com medo de tocar errado em si, ele que ainda estava todo ferido.
Mas porque profundamente sabia que até a farsa usaria contanto que conseguisse sair inteiro de seu próprio julgamento — de tal modo, se não se absolvesse, ficaria perplexo com um crime nas mãos — porque sabia que não se permitiria sair senão inteiro do perigoso confronto é que teve coragem de se encarar e, se necessário, de se horrorizar.
E mais: como só se permitiria vencer, pois no ponto em que estava precisava ferozmente de si mesmo, já de antemão se disse o seguinte: depois do julgamento necessário é que ele teria à frente a sua grande tarefa. Pois ali ele deveria se lembrar do que um homem quer.
Bem que lhe ocorreu que estava invertendo o que aconte­cera. Que não cometera um crime para se dar a oportunidade de saber o que um homem quer — essa oportunidade nascera casualmente com o crime. Mas procurou ignorar o incômodo sentimento de mistificação: ele precisava desse erro para ir adiante, e usou-o como instrumento. E, voluntariamente pas­sando ao largo de sua confusão, o homem tentou enfim se abor­dar. Com um suspiro, abordou-se em termos claros e pensou assim:
Que não cometera um crime vulgar.
Pensou que com esse crime executara o seu primeiro ato de homem. Sim. Corajosamente fizera o que todo homem tinha que fazer uma vez na sua vida: destruí-la.
Para reconstruí-la em seus próprios termos.
Fora isso então o que ele quisera com o crime?” Seu coração bateu pesado, irredutível, iluminado de paz. Sim, para reconstruí-la em seus próprios termos.
E se não conseguisse reconstruí-la? Pois na sua cólera ele quebrara o que existia em pedaços pequenos demais. Se não conseguisse reconstruí-la? Pois olhou o vazio perfeito da cla­ridade, e ocorreu-lhe a possibilidade estranha de jamais conseguir reconstruir. Mas se não conseguisse, não importava se­quer. Ele tivera a coragem de jogar profundamente. Um homem um dia tinha que arriscar tudo. Sim, ele fizera isso.
E orgulhoso de seu crime, olhou o mundo arrasado.
Por ele mesmo arrasado, a seus pés. O mundo desmontado por um crime. E que só ele, porque ele se fizera o grande cul­pado, poderia reerguer, dar um sentido e montar de novo.
Mas em seus próprios termos.
Era isso, então. Então Martim se perguntou com intensi­dade e com dor: seria isso mesmo? Porque suas verdades não pareciam suportar muito tempo de atenção sem que se defor­massem. E, por um instante, a verdade tanto poderia ser esta como outra: imutável era apenas o campo. Foi pois à custa de um controle de arte que Martim se apegou a uma verdade ape­nas e com dificuldade afastou as outras. (Sem se dar conta, sua reconstrução já começara arquejante.)
Não lhe importava que a origem de sua força presente tivesse sido um ato criminoso. O que importava é que daí ele tomara o impulso da grande reivindicação.
Foi assim, pois, que Martim saiu inteiro do julgamento. Um pouco cansado com o esforço.
Bem, e agora então seria lembrar-se do que um homem quer. Esse era o verdadeiro julgamento — e Martim abaixou a cabeça, confuso, em penitência.
Oh Deus, não era nada fácil para aquele homem exprimir o que queria. Ele queria isto: reconstruir. Mas era como uma ordem que se recebe e que não se sabe cumprir. Por mais livre, uma pessoa estava habituada a ser mandada, mesmo que fosse apenas pelo modo de ser dos outros. E agora Martim estava por sua própria conta.
Era preciso ter muita paciência com ele, ele era lento. Que queria ele? O que quer que quisesse nascera longe dentro dele, e não era fácil trazer à tona o rumorejo gago. Depois acontece que o que ele queria também se confundia estranhamente com o que ele já era — e que no entanto ele nunca atingira.
Sua obscura tarefa seria facilitada se ele se concedesse o uso das palavras já criadas. Mas sua reconstrução tinha de co­meçar pelas próprias palavras, pois palavras eram a voz de um homem. Isso sem falar que havia em Martim uma cautela de ordem meramente prática: do momento em que admitisse as palavras alheias, automaticamente estaria admitindo a palavra “crime” — e ele se tornaria apenas um criminoso vulgar em fuga. E ainda era muito cedo para ele se dar um nome, e para dar um nome ao que queria. Um passo a mais, e saberia. Mas era cedo ainda.
Então Martim desceu da encosta para avisar a Vitória que na manhã seguinte começaria a cavar as valas. Foi ao alpendre e esperou que Vitória acabasse de falar com Francisco.
O fato de ter enfim conseguido pensar não lhe dera ne­nhuma diretiva. Mas, a seu modo, ele assumira o seu crime — e sentia-se um homem inteiro, alto, sereno. Em pé no alpendre, sem pressa, ouvia a voz dura de Vitória e o assentimento de Francisco a ritmar a voz da mulher. Depois, quase sem perceber, passou a ouvir também as palavras.
— ...você tem que reunir os tomates também. E dessa vez empacotá-los melhor, Francisco. Melhor e mais depressa: desta vez o alemão vai mais cedo a Vila.
Martim ouvia, e esperava paciente. E foi então que enten­deu o que ouvira.
Assim, pois, ela ia se encontrar com um alemão. Com o alemão. Então ela se avistaria com o alemão. Estupidificado, atento, Martim revirou a frase na própria cabeça para ver se conseguia fazê-la perder o sentido. Mas de qualquer lado por onde a repetisse, era sempre a mesma: “a mulher veria o ale­mão”. Provavelmente vendia-lhe alguns produtos do sítio! pen­sou, de repente recuperando a antiga inteligência voraz da fuga e de um instante para outro dominado por uma esperteza de raciocínio que ultrapassou o seu poder normal, como se agora ele fosse capaz de perder o peso do corpo, rastejar baixo e se confundir com as sombras da parede. Em aguçamento felino de memória, lembrou-se instantaneamente de que vira Francisco limpar o caminhão. . .
“Para ir a Vila Baixa ou apenas por limpar?” Lembrou-se de que já ouvira Vitória falar no alemão — mas quando? quan­do! Ou nunca ouvira? Não, nunca ouvira. . . E Francisco já limpara o caminhão! Mas para o dia de hoje não seria a viagem — seria talvez para o dia seguinte? Então ela se avistará com o alemão, pensou ele com o cuidado de quem estivesse manu­seando algo traiçoeiro que pudesse inesperadamente se rebelar entre seus dedos e ganhar vida própria. Então ela se avistará com o alemão, pensou com cuidado. Mas o pensamento, embora muito claro, não o levou a parte alguma nem o dirigiu a nenhum outro pensamento. Capturado, ele mexeu feroz a cabeça de um lado para outro calculando a distância de um salto para fora do alpendre. Ela se avistará com o alemão, repetiu rápido e mes­quinho como um rato, e até sua cabeça pareceu mais peluda a Vitória — que o olhou um instante sem interromper as ordens para Francisco. “Ele parece um bicho sujo”, constatou a mulher continuando a falar com Francisco.
Mas em breve foi se esgarçando a escuridão íntima que envolvera Martim e na qual ele já estava começando a se mover com habilidade. Sua cabeça foi voltando pouco a pouco ao lugar. E quando Francisco foi embora e Vitória começou a lhe falar e a lhe dar ordens, Martim, esquecido do que viera lhe comuni­car a propósito das valas, olhou-a intensamente nos olhos. E procurou adivinhar, com o auxílio daquele parco elemento que eram dois olhos pretos, se Vitória seria mulher que tagarelasse sobre o que se estava passando na sua própria casa: sobre um novo trabalhador, um estranho à zona. . . Mas mesmo que ela não lhe contasse diretamente, poderia casualmente se referir a ele... e o alemão adivinharia que se tratava daquele mesmo que fugira de noite do hotel...
“Qual seria o grau de sua intimidade com o alemão?”, pro­curou Martim adivinhar, devassando-a avidamente com os olhos. Mas não encontrou resposta nenhuma naquele rosto que, por cansaço, um dia se fechara para sempre. “Talvez ela não fosse mulher que conversasse... mas o próprio alemão talvez falasse daquela noite em que o hóspede lhe escapara — e ela então saberia!” Martim se encolerizou contra si próprio por não ter jamais prestado atenção àquela mulher que ele não conhecia e cujos atos, por isso, ele não era capaz de prever. Por necessidade prática, então examinou-a pela primeira vez. Era um rosto fino e duro, onde os ossos pareciam falar mais que a carne. Era uma cabeça levantada. Mais que isso, ele não soube.
E a viagem, para quando seria? quanto tempo restava-lhe para uma fuga? “A viagem não podia ser para muito breve!”, pensou de repente mais lúcido, “pois Francisco não teria tempo de recolher e de empacotar os tomates! os tomates ainda não tinham sido sequer colhidos, pois agora é que Vitória dera ordem a Francisco!”, lembrou-se ele numa fúria de alegria. “Ou tinham?”, confundiu-se de repente.
— Quando é que a senhora vai a Vila? perguntou não suportando mais a dúvida, e a pergunta que ele não planejara mas quisera casual soou brusca e imperativa, suspeita a seus próprios ouvidos.
Vitória interrompeu-se, sua boca abriu-se em surpresa. Era a primeira vez que o homem lhe dirigia a palavra sem ser pro­vocado.
  Não sei, disse afinal, de sobrancelhas franzidas.
Então Martim, com a mesma perspicácia súbita que o ul­trapassava e ultrapassava a lógica — percebeu que Vitória o denunciaria. Então abaixou os ombros e desfez a tensão. Como se o primeiro instante de certeza só lhe desse o alívio de não duvidar, a quietude tomou-o. Ele olhou cruamente a mulher.
O rosto dela, a esse tranqüilo olhar sem disfarce, se aver­melhou descoberto. Tão nuamente fitada, a cara se contraiu em rápida procura de uma atitude, resolvendo-se afinal por uma expressão de impassibilidade a que o rubor deu mais deter­minação.
Então o homem entendeu ainda mais adiante: que desde o momento em que ele pisara na fazenda, ela se decidira a mandá-lo embora. O único elemento novo que agora viera acres­centar-se é que ela enfim escolhera o modo.
Por que não percebera ele, antes, aquilo que agora era tão claro? pensou surpreendido. Como não percebera que, dia após dia, aquela mulher lutara por se decidir, e que acumulativamente decidira? Como não percebera que cada passo despreocupado que ele dera — fizera com que a mulher, em eco, avançasse mais um passo para a decisão? Pois o homem rememorou ve­lozmente certos olhares da mulher enquanto ele trabalhava, e que ele mal notara; rememorou o tom de voz com que ela tantas vezes lhe perguntara quanto tempo ele se demoraria na fazenda. Mas por que lhe fizera ela essa pergunta? Como se cada vez lhe sugerisse a idéia de voluntariamente partir... Para lhe dar a oportunidade de fugir, e assim libertá-la da decisão difícil? Compreendeu que do momento em que ele pisara na fazenda, ela adivinhara. Adivinhara tão longe quanto se podia adivinhar sem saber. Somente uma coisa ele ainda não com­preendia, e olhou-a com curiosidade: é que ela não o tivesse ainda denunciado. Vitória não suportou o olhar simples do homem, e desviou os olhos.
“Essa era então a sua última resposta”, pensou ele. “E então era pouco o tempo que restava”, foi a próxima constata­ção de Martim.

1 Clariceanos