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Mostrando postagens de abril, 2008

...Um Dia... (trecho)

Um dia o amigo do pai veio de longe e abraçou-se com ele. Na hora do jantar, Joana viu estupefata e contrita uma galinha nua e amarela sobre a mesa. O pai e o homem bebiam vinho e o homem dizia de quando em quando: — Nem posso acreditar que tu tenhas arranjado uma filha... O pai voltava-se rindo para Joana e dizia: — Comprei na esquina... O pai estava alegre e também ficava sério, amassando bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de vinho. O homem virava-se para Joana e dizia: — Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai respondia: — Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem era Alfredo. — Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais em idade de brincar com o que o porco faz... Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão. — Qual a sensação de ter uma guria?, o homem mastigava. O pai enxugava a boca com o guardanapo, inclinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo: — Às vezes a de ter um ovo quente na m...

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas. Sinto que uma primeira liberdade está pouco a pouco me tomando... Pois nunca até hoje temi tão pouco a falta de bom-gosto: escrevi "vagalhões de mudez", o que antes eu não diria porque sempre respeitei a beleza e a sua moderação intrínseca. Disse "vagalhões de mudez", meu coração se inclina humilde, e eu aceito. Terei enfim perdido todo um sistema de bom Mas será este o meu ganho único? Quanto eu devia ter vivido presa para sentir-me agora mais livre somente por não recear mais a falta de estética... Ainda não pressinto o que mais terei ganho. Aos poucos, quem sabe, irei percebendo. Por enquanto o primeiro prazer tímido que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda é de uma tal bondade. É uma doçura.

A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele. [...] Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se tere...

Era Uma Vez

Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também. Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu. E comecei. Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível. Eu havia escrito: "Era uma vez um pássaro, meu De...

Água Viva (3° Parte)

Mas o outro lado, do qual escapei mal e mal, tornou-se sagrado e a ninguém conto meu segredo. Parece-me que em sonho fiz no outro lado um juramento, pacto de sangue. Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu. Sou um dos fracos? fraca que foi tomada por ritmo incessante e doido? se eu fosse sólida e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? Não encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida. Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases. Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não...

A Hora da Estrela (trecho)

A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó. Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje é hoje. Não estão me entendendo e eu ouço escuro que estão rindo de mim em risos rápidos e ríspidos de velhos. E ouço passos cadenciados na rua: Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. [...] Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui. [...]

O Dia de Joana (trecho)

A certeza de que dou para o mal, pensava Joana. O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconseqüências, de egoísmo e vitalidade. [...] Era um pouco de febre, sim. Se existisse pecado, ela pecara. Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a mulher da voz? Onde estavam as mulheres apenas fêmeas? E a continuação do que ela iniciara quando criança? Era um pouco de febre. Resultado daqueles dias em que vagava de um lado a outro, repudiando e amando mil vezes as mesmas coisas. Daquelas noites vivendo escuras c silenciosas, as pequenas estrelas piscando no alto. A moça estendida sobre a cama, olho vigilante na penumbra. A cama esb...

A Hora da Estrela (trecho)

Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de "força maior", como se diz nos requerimentos oficiais, por "força de lei". Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou ó escuro da noite. Embora não agüente bem ouvir um assovio no escuro, e passos. Escuridão? lembro-me de uma namorada: era moça-mulher e que escuridão dentro de seu corpo. Nunca a esqueci: jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu. O acontecimento fica tatuado em marca de fogo na carne viva e todos os que percebem o estigma fogem com horror. [...] E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela. Bem, é verdade que também queria alcançar uma sensação fina e que esse finíssimo não se quebrasse em linha perpétua. Ao mesmo tempo que quero também alcançar o trom...

Água Viva (2° Parte)

Chamo a gruta pelo seu nome e ela passa a viver com seu miasma. Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o seu eco. Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo. Nova era, esta minha, e ela me anuncia para já. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de v...

Água Viva (1° Parte)

E com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio - já estudei matemática que é a loucura do raciocínio -quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena. Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifício eles espocam mudos no espaço. Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o ...

A Hora da Estrela (trecho)

[...] Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa? Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar "quem sou eu?'' cairia estatelada e em cheio no chão. É que "quem sou eu?" provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto. A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. [...] Será mesmo que a ação ultrapassa a palavra? Mas que ao escrever - que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar.

O Pai (trecho)

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silên­cio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a má­quina e o silêncio havia uma orelha à escuta, gran­de, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam liga­dos pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes. Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer. Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Bran­co. Mas de repente num estremecimento deram cor­da no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máqui­na trotando, o cigarro do pai f...

A Hora da Estrela (trecho)

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir ó um fato. Os dois juntos - sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-sé ao próprio último ou primeiro pulsar. [...] Porque há o direito ao grito. Então eu g...

Onde Estivestes de Noite

"As histórias não têm defeito" Alberto Dines "O desconhecido vicia" Fuazi Arap "Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes esperando a morte" Raul Seixas "O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas" William Harvey A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio. Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o...

A Menor Mulher do Mundo

Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Petre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida...

É para lá que eu vou

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou. À ponta do lápis o traço. Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou. Na ponta dos pés o salto. Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou. Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou. Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra "tertúlia" e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o ...

A Repartição dos Pães

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior. Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo cora...

Biografia

Clarice Lispector nasceu na cidade russa de Tchetchelnik , na Ucrâ­nia , quando seus pais, Pedro Lispector e Marian Lispector deixavam a terra natal com destino às terras brasileiras. Ela tem duas irmãs mais ve­lhas, Elisa e Tânia . A família vai se instalar em Recife , onde a futura escritora começa a estudar. As primeiras letras são feitas no Grupo Escolar João Barbalho . Como Samuel Rawet, nascido na Polônia, Clarice Lispector curiosamente, vai aprender muito bem o português e se tornar dominante de uma das mais belas linguagens literárias no país de adoção. Já aos nove anos de idade tenta a sua primeira experiência no mundo das letras. É uma pequena peça de teatro. Lê autores brasileiros como Monteiro Lobato e José de Alencar. O curso ginasial é feito no Colégio Sílvio Leite, do Rio de Janeiro, para onde a família se transferira em 1934. Seu interesse pela literatura é crescente: já lê Machado de Assis e Graciliano Ramos, e descobre Hermann Hesse e Julien Green. Mais tar...

Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

O Livro Desconhecido

Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: "Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!"

É Preciso também não Perdoar

Uma entrevistada do programa da BBC, Inglaterra, na Hora das Mulheres, falou sobre suas experiências como prisioneira de guerra: - Quando uma pessoa já experimentou muitos sofrimentos, sabe apreciar as fraquezas e as boas qualidades até mesmo dos próprios inimigos. Por que deve ser nosso inimigo completamente mau, ou a vítima completamente boa? Ambos são criaturas humanas, com o que é bom e o que é mau. E creio que se apelarmos para o lado bom das pessoas teremos êxito, na maioria dos casos. Sei o que ela quis dizer, mas está errado. Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta. E não compreender os outros é que é certo.