Uma Tarde Plena

sábado, setembro 20, 2008

O sagüim é tão pequeno como um rato, e da mesma cor.
A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranqüila vista de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era um vivíssimo sagüim. Os primeiros momentos da mulher versus sagüim foram gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos: a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de saguïm: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e mais branca. O sagüim não fechou a boca um instante.
[...]
“Aposto” - pensou - “que nada mais me acontecerá durante muito tempo, aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras”. Que era em geral seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagüim que tenha deixado de nascer, viver e morrer - só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.

Uma imagem de prazer

sábado, setembro 20, 2008

Cada um de nós está no seu lugar, eu me submeto bem ao meu lugar. Vou até repetir um pouco mais porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo e as borboletas caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim cheios de gosto pela clareira verde. Nós somos contentes.

Trabalho Humano

sábado, setembro 20, 2008

Talvez esse tenha sido o meu maior esforço de vida: para compreender minha não inteligência fui obrigada a tornar-me inteligente. (Usa-se a inteligência para entender a não inteligência. Só que depois o instrumento continua a ser usado - e não podemos colher as coisas de mãos limpas.)

Acabou de sair

quinta-feira, setembro 11, 2008

Sua enorme inteligência compreensiva, aquele seu coração vazio de mim que precisa que eu seja admirável para poder me admirar. Minha grande altivez: prefiro ser achada na rua. Do que neste fictício palácio onde não me acharão porque - porque mando dizer que não estou, “ela acabou de sair”.

A Sensível

quinta-feira, setembro 11, 2008

Foi então que ela atravessou uma crise que nada parecia ter a ver com sua vida: uma crise de profunda piedade. A cabeça tão limitada, tão bem penteada, mal podia suportar perdoar tanto. Não podia olhar o rosto de um tenor enquanto este cantava alegre - virava para o lado o rosto magoado, insuportável, por piedade, não suportando a glória do cantor. Na rua de repente comprimia o peito com as mãos enluvadas - assaltada de perdão. Sofria sem recompensa, sem mesmo a simpatia por si própria.
Essa mesma senhora, que sofreu de sensibilidade como de doença, escolheu um domingo em que o marido viajava para procurar a bordadeira. Era mais um passeio que uma necessidade. Isso ela sempre soubera: passear. Como se ainda fosse a menina que passeia na calçada. Sobretudo passeava muito quando "sentia" que o marido a enganava. Assim foi procurar a bordadeira, no domingo de manhã. Desceu uma rua cheia de lama, de galinhas e de crianças nuas - aonde fora se meter! A bordadeira, na casa cheia de filhos com cara de fome, o marido tuberculoso - a bordadeira recusou-se a bordar a toalha porque não gostava de fazer ponto de cruz! Saiu afrontada e perplexa. "Sentia-se" tão suja pelo calor da manhã, e um de seus prazeres era pensar que sempre, desde pequena, fora muito limpa. Em casa almoçou sozinha, deitou-se no quarto meio escurecido, cheia de sentimentos maduros e sem amargura. Oh pelo menos uma vez não "sentia" nada. Senão talvez a perplexidade diante da liberdade da bordadeira pobre. Senão talvez um sentimento de espera. A liberdade.
Até que, dias depois, a sensibilidade se curou assim como uma ferida seca. Aliás, um mês depois, teve seu primeiro amante, o primeiro de uma alegre série.

A Roda Branca

quinta-feira, setembro 11, 2008

Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem - crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito, espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória meu rude pensamento quer cantar.
Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuir-te. Alço-me em direção de tua superfície que já é perfume.
Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina . . .
Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por um homem.
E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.