Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de março, 2009

O Lustre (trecho)

Com a mala pousada no chão ela esperou um instante na esquina. Sim, agora tomar um táxi, procurar Miguel, pedir o dinheiro da venda dos móveis, sim, sim. Mas suspirou imóvel e atenta. O rosto empoeirado sob o chapéu ligeiramente deslocado da cabeça parecia obscuro e oprimi­do por um vago temor. O que sucedia? por que desfalecia todo o seu passado e começava horrivelmente um tempo novo? De súbito começou a transpirar, o estômago encolheu-se numa só onda de enjôo, ela respira­va terrivelmente opressa e arquejante — o que lhe sucedia? ou o que ia suceder? Num esforço em que o peito parecia suportar um viscoso peso, com um mal-estar inexcedível, atravessou pálida a rua e o carro dobrou a esquina, ela recuou um passo, o carro hesitou, ela avançou e o carro veio em luz, ela o percebeu com um choque de calor sobre o corpo e uma queda sem dor enquanto o coração olhava surpreso para nenhum lugar e um grito de homem vinha de alguma direção — era veloz­mente o mesmo dia há três anos quando estaca...

O Lustre (trecho)

Levantou-se, caminhou com o barulho das rodas, os movimentos inclinados contra a direção do trem; de algum modo achava divertido o esforço que fazia e talvez por isso sorriu como se completasse algum desígnio; penetrou no carro restaurante, pediu café ajeitando o chapéu empoeirado, assumindo vagamente uma atitude de pessoa alta, grande e bem disposta. Sentia uma clara paz aberta como um campo ignorado e tranqüilo; aos poucos esqueceu-se de si própria e passou a observar com dócil interesse as coisas do trem, uma mulher mastigando. Raras fagulhas atravessavam com rápida violência as janelas, aquele já-já-já das rodas que pareciam um rumor interno. Entardecia, o trem corria pelos campos já sem cor. O restaurante estava quase vazio, sobre as toalhas manchadas as moscas pousavam, tudo era áspero e seco de poeira. Foi com um sobressalto que notou o próprio abandono. Perscrutou-se com ligeira ansiedade. Alguma coisa imperceptível já se transformara no entan­to. Com alguma inquietação ela se ...

Maio - A perigosa Yara

Ao cair de todas as tardes, a Yara, que mora no fundo das águas, surge de dentro delas, magnífica. Com flores aquáticas enfeita então os cabelos negros e brinca com os peixinhos de escapole-escapole. Mas no mês de maio ela aparece ao pôr-do-sol para arranjar noivo. As mães se preocupam com seus filhos varões, sabedoras de que a Yara quer noivos. Mas para os filhos, Yara é a tentação da aventura, pois há rapazes que gostam de perigo. À medida que a Yara canta, mais inquietos e atraídos ficam os moços, que, no entanto, não ousam se arriscar. Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado. Pensativamente estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando e que as águas já se amansavam. Foi quando pensou: acho que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo o mundo tem das sereias arriscadas — largou a canoa e correu a abrigar-se na taba. Mas de que adiantava fugir, se o feitiço da Flor das Águ...