Com a mala pousada no chão ela esperou um instante na esquina. Sim, agora tomar um táxi, procurar Miguel, pedir o dinheiro da venda dos móveis, sim, sim. Mas suspirou imóvel e atenta. O rosto empoeirado sob o chapéu ligeiramente deslocado da cabeça parecia obscuro e oprimido por um vago temor. O que sucedia? por que desfalecia todo o seu passado e começava horrivelmente um tempo novo? De súbito começou a transpirar, o estômago encolheu-se numa só onda de enjôo, ela respirava terrivelmente opressa e arquejante — o que lhe sucedia? ou o que ia suceder? Num esforço em que o peito parecia suportar um viscoso peso, com um mal-estar inexcedível, atravessou pálida a rua e o carro dobrou a esquina, ela recuou um passo, o carro hesitou, ela avançou e o carro veio em luz, ela o percebeu com um choque de calor sobre o corpo e uma queda sem dor enquanto o coração olhava surpreso para nenhum lugar e um grito de homem vinha de alguma direção — era velozmente o mesmo dia há três anos quando estacara para a frente impedindo-se por um triz de pisar num gatinho rígido e morto e o coração retrocedera enquanto, com os olhos, por um instante profundamente cerrados de asco, todo o seu corpo dizia para dentro de si mesmo num escuro e cavo momento, bem no oco sonoro de uma igreja silenciosa: arrh! em funda náusea vivificada o coração retrocedendo branco e sólido numa queda seca, arrh! E como pensasse escura em Vicente viu Adriano, Vicente, Miguel, Daniel — Daniel, Daniel! numa corrida clara e vertiginosa pelas ruas da cidade como um vento de cabelos soltos, entrou um instante na Granja, balançou-se rápido, rápido na cadeira e com absoluta estranheza olhou-se branca e de olhos escuros num espelho — longos corredores formavam-se no seu interior, longos corredores cansados, difíceis e escuros, portas sucessivas cerravam-se sem ruído com espanto e cuidado enquanto um momento de cólera de Daniel era pensado por ela e os instantes claramente se sucediam — ela e Daniel mastigaram o fim da fruta que escorria pelo queixo e olhavam-se de olhos brilhantes e inteligentes, quase um gostando do que o outro comia, fazia frio, o nariz vermelho e penoso no pátio da Granja; ela dirigiu um estremecimento a Daniel. Ela que nunca perdera tempo — confuso, surdo, rápido, claro, dissonante, o ruído que vem da orquestra afinando-se e se afinando para o concerto e um movimento de bem-estar procurando conforto, o coração insólito. O que sucedia era tão simples que ela não sabia donde entender. Na gelada penumbra corredores negros, estreitos, vazios e úmidos, uma substância dormente e silenciosa: e de súbito! de súbito! de súbito! a borboleta branca volitando nos corredores sombrios, perdendo-se no fim da escuridão. Ela desejava obscuramente interromper-se, ela desejava obscuramente interromper-se. A rua fumegava fria e sonolenta, seu próprio coração surpreendia-se, a cabeça pesada, pesada de graça atordoante — enquanto as ruas de Brejo Alto se encaminhavam velozes e vacilantes no seu cheiro de maçã, serragem, importação e exportação, aquela falta do mar. E de súbito arrebatada pelo próprio espírito. Era um momento extremamente íntimo e estranho — ela reconhecia tudo isto, quantas vezes, quantas vezes o ensaiara sem saber, e agora, extraordinariamente quieta, purificada das próprias fontes de energia, entregando mesmo as possibilidades futuras — ah, não ter então reconhecido aquela espécie de gesto, quase uma posição do pensamento, a cabeça inclinada para um lado, assim, assim... não lhe ter dado importância então... como se assustaria se o tivesse compreendido — mas agora não estava assustada, o impulso era inferior à qualidade mais secreta do ser, na gelada penumbra nascendo uma nova exatidão; não! não! não era uma sensação decadente! mas desejando obscuramente, obscuramente interromper-se, a dificuldade, a dificuldade que vinha do céu, que vinha. O primeiro acontecimento real, o único fato que serviria de começo à sua vida, livre como jogar um cálice de cristal pela janela, o movimento irresistível que não se poderia mais conter. Também procurava ensaiar quando buscava perceber o cheiro nas construções ensaiara o cheiro na meia penumbra, cal, madeira, ferro frio poeira assentada espreitando... como pudera esquecer: sim... O campo vazio de ervas ao vento sem ela, inteiramente sem ela, sem ela, sem nenhuma sensação só o vento, a irrealidade se aproximando em cores iridescentes, em velocidade alta, leve, penetrante. Névoas se esgarçando e descobrindo formas firmes um som mudo rebentando da intimidade adivinhada das coisas o silêncio comprimindo partículas de terra em escuridão e negras formigas lentas e altas caminhando sobre grossos grãos de terra, o vento correndo alto adiante, um cubo límpido pairando no ar e a luz correndo paralela a todos os pontos, era presente, assim fora, assim seria, e o vento, o vento, ela que fora tão constante.
Levantou-se, caminhou com o barulho das rodas, os movimentos inclinados contra a direção do trem; de algum modo achava divertido o esforço que fazia e talvez por isso sorriu como se completasse algum desígnio; penetrou no carro restaurante, pediu café ajeitando o chapéu empoeirado, assumindo vagamente uma atitude de pessoa alta, grande e bem disposta. Sentia uma clara paz aberta como um campo ignorado e tranqüilo; aos poucos esqueceu-se de si própria e passou a observar com dócil interesse as coisas do trem, uma mulher mastigando. Raras fagulhas atravessavam com rápida violência as janelas, aquele já-já-já das rodas que pareciam um rumor interno. Entardecia, o trem corria pelos campos já sem cor. O restaurante estava quase vazio, sobre as toalhas manchadas as moscas pousavam, tudo era áspero e seco de poeira. Foi com um sobressalto que notou o próprio abandono. Perscrutou-se com ligeira ansiedade. Alguma coisa imperceptível já se transformara no entanto. Com alguma inquietação ela se escutava, o ser acordado, profundamente intranqüilo. Atentava de leve; desvanecera-se a naturalidade das coisas ao seu redor, como o último laivo de morno prazer sonolento ao lavar o rosto, agora a própria existência era sacudida, dura e várias vezes quebrada. Ela mesma sentia-se intimamente sem conforto, as entranhas despertas como se tivesse os sapatos molhados ou a roupa suada presa às costas — num desgosto desassossegado afastou-se do encosto do banco. Compreendia numa decepção sem força e estupefata, já um começo de profundo cansaço fulgurando nos olhos, compreendia que não chegara a nenhuma posse, que a partida para a cidade não era simbólica. E a sensação que experimentara há poucos minutos? buscava ela esperançosa. Mas não, não — e ela não estava à altura de compreender seus pensamentos — na verdade o que havia de intocado, desperto e confuso nela mesma ainda tinha forças para fazer nascer um tempo de espera mais longo que o da infância até os seus dias, de tal modo ela não chegara a nenhum ponto, dissolvida vivendo — isso assustava-a cansada e desesperada do próprio fluir instável e isso era algo horrivelmente inegável, e isso no entanto a aliviava de um modo estranho, como a sensação a cada manhã de não ter morrido à noite. Com um despercebido movimento de desânimo perguntava-se confusamente se esqueceria para sempre o que sentira afinal de tão firme e sereno e cuja espécie já agora ela não podia precisar com nitidez, num começo de esquecimento. Não, não esqueceria, agarrava-se ela a si mesma sem saber, apenas como usá-lo? como viver disso? jamais poderia gastá-lo e isso era também algo inegável, o trem carregava-a para a frente como perdendo-a de si própria, as rodas resfolegavam, o rapaz do restaurante inclinava o corpo segundo o movimento do vagão, equilibrando-se, desequilibrando-se, o café, era quente, sim, certamente a primeira vez no mundo que num vagão restaurante alguém conseguia tomar café quente, o que era uma coisa de se sacudir a cabeça de leve, surpresa, como ela fazia agora agitando a fita vermelha do chapéu marrom.
Ao cair de todas as tardes, a Yara, que mora no fundo das águas, surge de dentro delas, magnífica. Com flores aquáticas enfeita então os cabelos negros e brinca com os peixinhos de escapole-escapole. Mas no mês de maio ela aparece ao pôr-do-sol para arranjar noivo.
As mães se preocupam com seus filhos varões, sabedoras de que a Yara quer noivos. Mas para os filhos, Yara é a tentação da aventura, pois há rapazes que gostam de perigo.
À medida que a Yara canta, mais inquietos e atraídos ficam os moços, que, no entanto, não ousam se arriscar.
Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado. Pensativamente estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando e que as águas já se amansavam. Foi quando pensou: acho que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo o mundo tem das sereias arriscadas — largou a canoa e correu a abrigar-se na taba. Mas de que adiantava fugir, se o feitiço da Flor das Águas já o enovelara todo? Lembrava-se do fascínio de seu cantarolar e sofria de saudade. A mãe do Tapuia adivinhara o que acontecia com o filho: examinava-o e via nos seus olhos a marca da fingida sereia.
Enquanto isso, Yara, confiante no seu encanto, esperava que o índio tivesse coragem de casar-se com ela. Pois — ainda nesse mês de florido e perfumado maio — o índio fugiu da taba e de seu povo, entrou de canoa no rio. E ficou esperando de coração trêmulo.
Então — então a Yara veio vindo devagar, devagar, abriu os lábios úmidos e cantou suave a sua vitória, pois já sabia que arrastaria o Tapuia para o fundo do rio.
Os dois mergulharam e advinha-se que houve festa no profundo das águas.
As águas estavam de superfície tranqüila como se nada tivesse acontecido. De tardinha, aparecia a morena das águas a se enfeitar com rosas e jasmins.
Porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava.
Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.
As mães se preocupam com seus filhos varões, sabedoras de que a Yara quer noivos. Mas para os filhos, Yara é a tentação da aventura, pois há rapazes que gostam de perigo.
À medida que a Yara canta, mais inquietos e atraídos ficam os moços, que, no entanto, não ousam se arriscar.
Sim, mas houve um dia um Tapuia sonhador e arrojado. Pensativamente estava pescando e esqueceu-se de que o dia estava acabando e que as águas já se amansavam. Foi quando pensou: acho que estou tendo uma ilusão. Porque a morena Yara, de olhos pretos e faiscantes, erguera-se das águas. O Tapuia teve o medo que todo o mundo tem das sereias arriscadas — largou a canoa e correu a abrigar-se na taba. Mas de que adiantava fugir, se o feitiço da Flor das Águas já o enovelara todo? Lembrava-se do fascínio de seu cantarolar e sofria de saudade. A mãe do Tapuia adivinhara o que acontecia com o filho: examinava-o e via nos seus olhos a marca da fingida sereia.
Enquanto isso, Yara, confiante no seu encanto, esperava que o índio tivesse coragem de casar-se com ela. Pois — ainda nesse mês de florido e perfumado maio — o índio fugiu da taba e de seu povo, entrou de canoa no rio. E ficou esperando de coração trêmulo.
Então — então a Yara veio vindo devagar, devagar, abriu os lábios úmidos e cantou suave a sua vitória, pois já sabia que arrastaria o Tapuia para o fundo do rio.
Os dois mergulharam e advinha-se que houve festa no profundo das águas.
As águas estavam de superfície tranqüila como se nada tivesse acontecido. De tardinha, aparecia a morena das águas a se enfeitar com rosas e jasmins.
Porque um só noivo, ao que parece, não lhe bastava.
Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.