Feliz 2014!

segunda-feira, dezembro 30, 2013

A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.

Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.

Clarice Lispector, crônicas - Jornal do Brasil (1968).

93 anos de Clarice Lispector

terça-feira, dezembro 10, 2013

"É um nome latino, né, eu perguntei para o meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e se transformando nessa coisa que parece "LIS NO PEITO", em latim: flor de lis".
Clarice Lispector



Um pouco de felicidade clandestina

sábado, novembro 30, 2013

Seis anos se passaram desde a criação deste Blog.

Meu único objetivo com este Blog foi o de fazer com que a obra de Clarice Lispector pudesse se propagar para o maior número de pessoas. Trata-se de um objetivo cumprido; na época em que o Blog foi lançado, o conhecimento “internético” de Clarice nem se comparava ao que é hoje. Eu sempre adorei Clarice como uma personagem que “o sonho humano alimenta, [que] não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, tal como postulou Cecília Meireles ao falar da “liberdade”.

Chegamos ao fim de mais um ano de blog e ao início de mais um ano de tudo. Hoje nós somos o maior canal do mundo sobre Clarice Lispector - apoiados pela Editora Rocco, responsável pelas publicações das obras de Clarice Lispector.

E saibam: nada disso teria sido possível se vocês não tivessem tido a urgência para uma coisa que o mundo inteiro chama desesperadamente de “respiração”.

Keidy Matias, do Nordeste do Brasil/Rio Grande do Norte, historiadora pela UFRN.

A Maçã no Escuro

domingo, novembro 10, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Três

Mas foi só de noite, sentado ereto na cama e sem acender a lamparina, que Martim entendeu plenamente o que quisera significar quando pensara que restava pouco tempo. Com espanto percebeu que na verdade não se referira ao tempo que lhe restava para planejar a fuga. Embora, desde o momento em que falara com Vitória no alpendre, tivesse agido como se fosse óbvio que a fuga deveria ser naquela mesma noite, antes que o caminhão fosse usado por Vitória, e se ele quisesse estar bem longe quando ela se encontrasse com o alemão. Mas como se a escuridão do depósito o levasse à sua própria escuridão, ele se entendeu afinal: não era para a fuga que restava pouco tempo. Estivera tão ocupado em planejar a escapada que não percebera que não pretendia fugir. “Ele tinha que possuir tudo antes do fim e tinha que viver uma vida inteira antes do fim.” Era para isso que o tempo se tornara curto.
Com um espanto deslumbrado — porque a verdade é que até esse instante ainda não se levara realmente a sério, nem sequer percebera até que ponto aceitara a gravidade, e, assustado, via agora que não estivera brincando — com espanto deslumbrado, não era para a fuga que restava pouco tempo. Sua própria coragem deixou-o então desconfiado. Ele se suspeitava. E não somente isto o homem percebeu com surpresa. Na violência do ultimato de agora Martim reconheceu que a idéia de que não havia tempo a perder estivera constantemente com ele, mesmo antes do ultimato, disfarçada sob o trabalho diário, paciente sob o sono em que uma pessoa se move lenta. Então, de repente excitadíssimo e caminhando de um lado para outro na exigüidade escura do depósito, Martim tomou consciência de que agora era apenas o guardião de um pequeno tempo que não lhe pertencia. E que sua tarefa era maior que o tempo. Agora que emergira até chegar ao ponto de homem na encosta, agora que emergira até entender seu crime e saber o que desejava — ou até ter inventado o que se passara com ele e inventado o que desejava? que importava se a verdade já existia ou se era criada, pois criada mesmo é que valia como ato de homem — agora que ele conseguira se justificar, tinha de prosseguir. E conseguir antes do fim próximo a — a reconstrução do mundo. Sim. A reconstrução do mundo. É que o homem acabara de perder completamente a vergonha. Não teve sequer pudor de voltar a usar palavras da adolescência; foi obrigado a usálas pois a última vez que tivera linguagem própria fora da adolescência; adolescência era arriscar tudo — e ele agora estava arriscando tudo. Tinha pouco tempo e devia começar agora mesmo, por assim dizer.
“Da reconstrução do mundo dentro de si, ele passaria à reconstrução da Cidade, que era uma forma de viver e que ele repudiara com um assassinato; era para isso que o tempo era curto,” “Acho que não sou nada tolo!”, pensou fascinado. Entendendo-se, afinal, uma calma enorme dominou o homem. Não o espantou sequer a enormidade insensata de seus propósitos. Uma vez que destruíra a ordem, ele nada mais tinha a perder, e nenhum compromisso o comprava. Ele podia ir de encontro a uma ordem nova. Então, espantado, ele se indagou se algum homem fora alguma vez tão livre como ele estava agora. Depois do quê, ficou calmo. Não porque estivesse calmo: na verdade seu corpo tremia. Mas porque, de agora em diante, e a começar deste próprio instante, ele teria que ser calmo e incrivelmente astuto para conseguir se acompanhar e acompanhar a rapidez com que teria que agir. Tinha que ser calmo.
Agora que alcançara na montanha a própria grandeza — a grandeza com que se  nascia. Essa grandeza — oh, apenas tamanho de homem — que fora sepultada como arma vergonhosa e inútil. Ser um homem fora alguma coisa sem aplicação. Mas grandeza de que ele agora enfim precisava como instrumento. Pela primeira vez Martim precisava profundamente de si mesmo. Como se enfim — enfim — tivesse sido convocado... O que o deixou afobado no escuro. E como no escuro nem as paredes viam seu rosto, Martim fez com grande alívio um rosto de dor, e depois de pudor pela alegria que tivera e depois de dor. Sentou-se enfim na cama. E num plano frio e calculado resolveu que sua primeira luta devia ser consigo mesmo. Pois, se ele queria reconstruir o mundo, ele próprio não servia... Se queria, como último termo final de seu trabalho, chegar aos outros homens — teria antes que terminar de destruir totalmente seu modo de ser antigo.
Para que o mendigo à porta do cinema não fosse uma pessoa abstrata e perpétua, ele teria que começar de muito longe, e do primeiro começo. É verdade que faltava pouco para destruir, pois, com o crime, ele já destruíra muito. Mas não de todo. Havia ainda... havia ainda ele próprio, que era uma tentação constante. E seu pensamento, como era, só poderia dar um determinado e fatal resultado, assim como uma foice só pode dar um determinado tipo de corte. Se a destruição primeira e grosseira ele a obtivera com o ato de cólera, o trabalho mais delicado estava ainda por se fazer. E o trabalho delicado era este: ser objetivo. Mas como? de que modo ser objetivo? Porque se uma pessoa não quisesse errar — e ele não queria errar nunca mais — terminaria prudentemente se mantendo na seguinte atitude: “não há nada tão branco como o branco”, “não há nada tão cheio de água como uma coisa cheia de água”, “a coisa amarela é amarela”. O que não seria mera prudência, seria exatidão de cálculo e sóbrio rigor. Mas aonde o levaria? porque afinal não somos cientistas.
O trabalho era este: ser objetivo. O que seria a experiência mais estranha para um homem. Que Martim se lembrasse, nunca ouvira falar de um homem objetivo. Não, não — confundiu-se ele um pouco cansado — houvera homens assim, já houvera, sim, homens cuja alma passara a existir em atos, e para quem os outros homens não tinham sido unhas grandes; houvera homens assim, ele não se lembrou mais quem, e estava um pouco fatigado, um pouco solitário. É que seu plano era tão facilmente escapável à sua própria percepção, tão fino no meio de sua força apenas grosseira, que ele teve medo de que o instinto não o socorresse e que, como recurso desesperado, ele se tornasse inteligente. E ele por enquanto não passava ainda de uma coisa vaga que queria perguntar, perguntar e perguntar — até que pouco a pouco o mundo fosse se formando em resposta.
Martim vacilou cansado, olhou em torno, recuperou-se um pouco. Avançava aos recuos, com aparente liberdade. O que lhe deu às vezes apoio, e generalizado ânimo de continuar, foi a lembrança do prazer bem-sucedido que ele tivera com mulheres. Mas, em seguida, o fato de jamais ter conseguido uma bicicleta paralisou-o: ele poderia, pois, falhar. Através de toda a sua vida, como uma torneira que pinga, ele quisera a bicicleta.
De novo seu plano lhe pareceu frágil demais, e aquela coisa respirante que ele era no escuro pareceu-lhe muito pouco, como começo de conversa. Martim se atrapalhou todo como se tivesse mais dedos do que precisava e como se ele próprio estivesse atabalhoando o próprio caminho. Veio-lhe então o desejo de que uma criança começasse a chorar para ele poder ser bom para ela. É que estava desamparado e sentia necessidade de dar, que era a forma como uma pessoa desajeitada sabia pedir. Sua ambição era grande e desamparada, ele quereria segurar a mão de uma criança; estava um pouco cansado.
“Para que quero tanto?”, insinuou-lhe então o hábito que terminara de novo por fazer com que a fome dos outros fosse uma abstração, o mesmo hábito que é o medo que um homem tem. “E se eu não me levasse a sério?”, pensou astuto, pois essa tinha sido a solução antiga, e a de muitos. “Porque se subitamente fôssemos dar importância ao que realmente nos importa — estaríamos com a vida perdida.” Mas também se dizia que aquele que perde a sua vida, ganha a sua vida.
Passado o repouso no desânimo, Martim remexeu-se inquieto: seria preciso violentar-se cada vez que o hábito voltasse. Pois de agora em diante já não lhe era mais permitido sequer interromper-se com uma pergunta — “para que quero tanto” — qualquer interrupção poderia ser fatal, e ele não só correria o risco de perder a velocidade como o equilíbrio. O crescimento é cheio de truques e de autoludíbrio e de fraude; poucos são os que têm a desonestidade necessária para não se enjoar. Com autopreservação feroz, Martim não podia mais se dar ao luxo da decência nem se interromper com uma sinceridade.

Nélida Piñon lança volume de ensaio onde cita sua relação de amizade com Clarice Lispector

quarta-feira, agosto 28, 2013

Se no clássico 'A república dos sonhos' a romancista, ensaísta e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras Nélida Piñon volta à Galícia, na Espanha, para falar de suas raízes e de seus antepassados, em 'O livro das horas', com o mesmo encantamento, nos envolve em dezenas de histórias vividas ao longo dos anos. Logo nas primeiras linhas, com o coração aberto, confessa: “Não sou forte nem poderosa. Tampouco estou na flor dos 20 anos. Não faz falta enaltecer o meu retrato que a mãe Carmen outrora pendurou em seu quarto antes de morrer, com a intenção de eternizar a juventude da filha na sua retina... A cada dia aprendo a amar. A família, os amigos, as línguas, as instância da vida e da arte.”

Nascida em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro, há 76 anos, Nélida Piñon estreou na literatura em 1961, com o romance 'Guia-mapa' de Gabriel Arcanjo, primeiro passo na carreira literária que a levaria a se tornar uma das escritoras mais respeitadas do país. Na sequência vieram outros livros, como 'Madeira feita de cruz', de 1963; 'O fundador', de 1969; e 'Vozes do deserto', que lhe valeu o Prêmio Jabuti de 2005.

Como uma Sherazade moderna, à qual não falta o poder da sedução, em 'O livro das horas' – que ela lança hoje em Belo Horizonte no projeto Ofício da Palavra –, Nélida Piñon fala de coisas bem íntimas, como da sua relação de amizade com Clarice Lispector. As duas se conheceram em 1961 – Clarice já consagrada e Nélida uma estreante. “Clarice me faz falta, dói-me falar nela. Sua amizade me fez crescer”, diz.

Às vezes costumavam ir juntas visitar uma cartomante chamada Nadir, na qual Clarice acreditava muito. Nélida lembra que a amiga, mesmo sendo de família judaica, gostava de ler o Novo testamento e se interessava pelo catolicismo, tendo inclusive revelado a uma amiga, Olga Borelli, que gostaria de ser enterrada como cristã.

Nélida não se furta também em dizer, com uma sinceridade tocante, que a memória é frágil e que às vezes consulta fontes, no afã de defender seus haveres. “Confundo a coroa de louros com a de espinhos. E quem será dono de mim? Eu ou minha memória, que funciona como um legado paralelo ao meu ser. Uma matéria que mal domino e com a qual não conto quando mais a necessito”, confessa.


OFÍCIO DA PALAVRA
Com Nélida Piñon, que lança 'O livro das horas'

Nesta terça-feira, às 19h30

Local: Museu de Artes e Ofícios, na Praça da Estação s/nº

Informações: (31) 3225-1888

Entrada franca

Fonte: Divirta-se

A Maçã no Escuro

quinta-feira, maio 23, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Dois
 
Até que nessa tarde na encosta Martim começou a se jus­tificar. Chegara o duro tempo de explicação.
Ali, antes de prosseguir, ele devia ser inocente ou culpado. Ali ele tinha que saber se sua mãe, que jamais o entenderia se fosse viva, o amaria sem entendê-lo. Ali ele devia saber se o fantasma de seu pai lhe daria a mão sem espanto. Ali ele se julgaria — e dessa vez com a linguagem dos outros. Agora teria de chamar de crime o que fizera. O homem estremeceu com medo de tocar errado em si, ele que ainda estava todo ferido.
Mas porque profundamente sabia que até a farsa usaria contanto que conseguisse sair inteiro de seu próprio julgamento — de tal modo, se não se absolvesse, ficaria perplexo com um crime nas mãos — porque sabia que não se permitiria sair senão inteiro do perigoso confronto é que teve coragem de se encarar e, se necessário, de se horrorizar.
E mais: como só se permitiria vencer, pois no ponto em que estava precisava ferozmente de si mesmo, já de antemão se disse o seguinte: depois do julgamento necessário é que ele teria à frente a sua grande tarefa. Pois ali ele deveria se lembrar do que um homem quer.
Bem que lhe ocorreu que estava invertendo o que aconte­cera. Que não cometera um crime para se dar a oportunidade de saber o que um homem quer — essa oportunidade nascera casualmente com o crime. Mas procurou ignorar o incômodo sentimento de mistificação: ele precisava desse erro para ir adiante, e usou-o como instrumento. E, voluntariamente pas­sando ao largo de sua confusão, o homem tentou enfim se abor­dar. Com um suspiro, abordou-se em termos claros e pensou assim:
Que não cometera um crime vulgar.
Pensou que com esse crime executara o seu primeiro ato de homem. Sim. Corajosamente fizera o que todo homem tinha que fazer uma vez na sua vida: destruí-la.
Para reconstruí-la em seus próprios termos.
Fora isso então o que ele quisera com o crime?” Seu coração bateu pesado, irredutível, iluminado de paz. Sim, para reconstruí-la em seus próprios termos.
E se não conseguisse reconstruí-la? Pois na sua cólera ele quebrara o que existia em pedaços pequenos demais. Se não conseguisse reconstruí-la? Pois olhou o vazio perfeito da cla­ridade, e ocorreu-lhe a possibilidade estranha de jamais conseguir reconstruir. Mas se não conseguisse, não importava se­quer. Ele tivera a coragem de jogar profundamente. Um homem um dia tinha que arriscar tudo. Sim, ele fizera isso.
E orgulhoso de seu crime, olhou o mundo arrasado.
Por ele mesmo arrasado, a seus pés. O mundo desmontado por um crime. E que só ele, porque ele se fizera o grande cul­pado, poderia reerguer, dar um sentido e montar de novo.
Mas em seus próprios termos.
Era isso, então. Então Martim se perguntou com intensi­dade e com dor: seria isso mesmo? Porque suas verdades não pareciam suportar muito tempo de atenção sem que se defor­massem. E, por um instante, a verdade tanto poderia ser esta como outra: imutável era apenas o campo. Foi pois à custa de um controle de arte que Martim se apegou a uma verdade ape­nas e com dificuldade afastou as outras. (Sem se dar conta, sua reconstrução já começara arquejante.)
Não lhe importava que a origem de sua força presente tivesse sido um ato criminoso. O que importava é que daí ele tomara o impulso da grande reivindicação.
Foi assim, pois, que Martim saiu inteiro do julgamento. Um pouco cansado com o esforço.
Bem, e agora então seria lembrar-se do que um homem quer. Esse era o verdadeiro julgamento — e Martim abaixou a cabeça, confuso, em penitência.
Oh Deus, não era nada fácil para aquele homem exprimir o que queria. Ele queria isto: reconstruir. Mas era como uma ordem que se recebe e que não se sabe cumprir. Por mais livre, uma pessoa estava habituada a ser mandada, mesmo que fosse apenas pelo modo de ser dos outros. E agora Martim estava por sua própria conta.
Era preciso ter muita paciência com ele, ele era lento. Que queria ele? O que quer que quisesse nascera longe dentro dele, e não era fácil trazer à tona o rumorejo gago. Depois acontece que o que ele queria também se confundia estranhamente com o que ele já era — e que no entanto ele nunca atingira.
Sua obscura tarefa seria facilitada se ele se concedesse o uso das palavras já criadas. Mas sua reconstrução tinha de co­meçar pelas próprias palavras, pois palavras eram a voz de um homem. Isso sem falar que havia em Martim uma cautela de ordem meramente prática: do momento em que admitisse as palavras alheias, automaticamente estaria admitindo a palavra “crime” — e ele se tornaria apenas um criminoso vulgar em fuga. E ainda era muito cedo para ele se dar um nome, e para dar um nome ao que queria. Um passo a mais, e saberia. Mas era cedo ainda.
Então Martim desceu da encosta para avisar a Vitória que na manhã seguinte começaria a cavar as valas. Foi ao alpendre e esperou que Vitória acabasse de falar com Francisco.
O fato de ter enfim conseguido pensar não lhe dera ne­nhuma diretiva. Mas, a seu modo, ele assumira o seu crime — e sentia-se um homem inteiro, alto, sereno. Em pé no alpendre, sem pressa, ouvia a voz dura de Vitória e o assentimento de Francisco a ritmar a voz da mulher. Depois, quase sem perceber, passou a ouvir também as palavras.
— ...você tem que reunir os tomates também. E dessa vez empacotá-los melhor, Francisco. Melhor e mais depressa: desta vez o alemão vai mais cedo a Vila.
Martim ouvia, e esperava paciente. E foi então que enten­deu o que ouvira.
Assim, pois, ela ia se encontrar com um alemão. Com o alemão. Então ela se avistaria com o alemão. Estupidificado, atento, Martim revirou a frase na própria cabeça para ver se conseguia fazê-la perder o sentido. Mas de qualquer lado por onde a repetisse, era sempre a mesma: “a mulher veria o ale­mão”. Provavelmente vendia-lhe alguns produtos do sítio! pen­sou, de repente recuperando a antiga inteligência voraz da fuga e de um instante para outro dominado por uma esperteza de raciocínio que ultrapassou o seu poder normal, como se agora ele fosse capaz de perder o peso do corpo, rastejar baixo e se confundir com as sombras da parede. Em aguçamento felino de memória, lembrou-se instantaneamente de que vira Francisco limpar o caminhão. . .
“Para ir a Vila Baixa ou apenas por limpar?” Lembrou-se de que já ouvira Vitória falar no alemão — mas quando? quan­do! Ou nunca ouvira? Não, nunca ouvira. . . E Francisco já limpara o caminhão! Mas para o dia de hoje não seria a viagem — seria talvez para o dia seguinte? Então ela se avistará com o alemão, pensou ele com o cuidado de quem estivesse manu­seando algo traiçoeiro que pudesse inesperadamente se rebelar entre seus dedos e ganhar vida própria. Então ela se avistará com o alemão, pensou com cuidado. Mas o pensamento, embora muito claro, não o levou a parte alguma nem o dirigiu a nenhum outro pensamento. Capturado, ele mexeu feroz a cabeça de um lado para outro calculando a distância de um salto para fora do alpendre. Ela se avistará com o alemão, repetiu rápido e mes­quinho como um rato, e até sua cabeça pareceu mais peluda a Vitória — que o olhou um instante sem interromper as ordens para Francisco. “Ele parece um bicho sujo”, constatou a mulher continuando a falar com Francisco.
Mas em breve foi se esgarçando a escuridão íntima que envolvera Martim e na qual ele já estava começando a se mover com habilidade. Sua cabeça foi voltando pouco a pouco ao lugar. E quando Francisco foi embora e Vitória começou a lhe falar e a lhe dar ordens, Martim, esquecido do que viera lhe comuni­car a propósito das valas, olhou-a intensamente nos olhos. E procurou adivinhar, com o auxílio daquele parco elemento que eram dois olhos pretos, se Vitória seria mulher que tagarelasse sobre o que se estava passando na sua própria casa: sobre um novo trabalhador, um estranho à zona. . . Mas mesmo que ela não lhe contasse diretamente, poderia casualmente se referir a ele... e o alemão adivinharia que se tratava daquele mesmo que fugira de noite do hotel...
“Qual seria o grau de sua intimidade com o alemão?”, pro­curou Martim adivinhar, devassando-a avidamente com os olhos. Mas não encontrou resposta nenhuma naquele rosto que, por cansaço, um dia se fechara para sempre. “Talvez ela não fosse mulher que conversasse... mas o próprio alemão talvez falasse daquela noite em que o hóspede lhe escapara — e ela então saberia!” Martim se encolerizou contra si próprio por não ter jamais prestado atenção àquela mulher que ele não conhecia e cujos atos, por isso, ele não era capaz de prever. Por necessidade prática, então examinou-a pela primeira vez. Era um rosto fino e duro, onde os ossos pareciam falar mais que a carne. Era uma cabeça levantada. Mais que isso, ele não soube.
E a viagem, para quando seria? quanto tempo restava-lhe para uma fuga? “A viagem não podia ser para muito breve!”, pensou de repente mais lúcido, “pois Francisco não teria tempo de recolher e de empacotar os tomates! os tomates ainda não tinham sido sequer colhidos, pois agora é que Vitória dera ordem a Francisco!”, lembrou-se ele numa fúria de alegria. “Ou tinham?”, confundiu-se de repente.
— Quando é que a senhora vai a Vila? perguntou não suportando mais a dúvida, e a pergunta que ele não planejara mas quisera casual soou brusca e imperativa, suspeita a seus próprios ouvidos.
Vitória interrompeu-se, sua boca abriu-se em surpresa. Era a primeira vez que o homem lhe dirigia a palavra sem ser pro­vocado.
  Não sei, disse afinal, de sobrancelhas franzidas.
Então Martim, com a mesma perspicácia súbita que o ul­trapassava e ultrapassava a lógica — percebeu que Vitória o denunciaria. Então abaixou os ombros e desfez a tensão. Como se o primeiro instante de certeza só lhe desse o alívio de não duvidar, a quietude tomou-o. Ele olhou cruamente a mulher.
O rosto dela, a esse tranqüilo olhar sem disfarce, se aver­melhou descoberto. Tão nuamente fitada, a cara se contraiu em rápida procura de uma atitude, resolvendo-se afinal por uma expressão de impassibilidade a que o rubor deu mais deter­minação.
Então o homem entendeu ainda mais adiante: que desde o momento em que ele pisara na fazenda, ela se decidira a mandá-lo embora. O único elemento novo que agora viera acres­centar-se é que ela enfim escolhera o modo.
Por que não percebera ele, antes, aquilo que agora era tão claro? pensou surpreendido. Como não percebera que, dia após dia, aquela mulher lutara por se decidir, e que acumulativamente decidira? Como não percebera que cada passo despreocupado que ele dera — fizera com que a mulher, em eco, avançasse mais um passo para a decisão? Pois o homem rememorou ve­lozmente certos olhares da mulher enquanto ele trabalhava, e que ele mal notara; rememorou o tom de voz com que ela tantas vezes lhe perguntara quanto tempo ele se demoraria na fazenda. Mas por que lhe fizera ela essa pergunta? Como se cada vez lhe sugerisse a idéia de voluntariamente partir... Para lhe dar a oportunidade de fugir, e assim libertá-la da decisão difícil? Compreendeu que do momento em que ele pisara na fazenda, ela adivinhara. Adivinhara tão longe quanto se podia adivinhar sem saber. Somente uma coisa ele ainda não com­preendia, e olhou-a com curiosidade: é que ela não o tivesse ainda denunciado. Vitória não suportou o olhar simples do homem, e desviou os olhos.
“Essa era então a sua última resposta”, pensou ele. “E então era pouco o tempo que restava”, foi a próxima constata­ção de Martim.

A Maçã no Escuro

quinta-feira, maio 23, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Um


Mas nessa mesma noite, andando excitado de um lado para outro dentro da pequenez do depósito, Martim mal se conteve com o que ganhara. Era a alegria. Não sabia o que fazer de si como se tivesse uma notícia e não houvesse a quem dá-la. Estava muito contente de ser uma pessoa, este era um dos grandes pra­zeres da vida. No entanto, inconsolável, parecia-lhe que jamais seria indenizado.
E pela primeira vez desde que fugira tinha necessidade de se comunicar. Sentou-se no bordo da cama, a cabeça feliz entre as mãos. Não sabia por onde começar a pensar. Então lembrou-se de seu filho que um dia dissera na hora do jantar: não quero esta comida! A mãe retrucara: que comida você quer? O me­nino terminara dizendo com o doloroso espanto da descoberta:
  Nenhuma!
Ele, Martim, então lhe dissera:
  É muito simples: se você não está com fome, não pre­cisa comer.
Mas a criança começara a chorar:
  Não estou com fome, não estou com fome. . .
E como o rádio também estava ligado, o homem gritara:
  Já lhe disse que se você não tem fome não precisa comer! por que então está chorando?
O menino respondera:
  Estou chorando porque não estou com fome.
  Prometo que amanhã você vai ter fome, prometo! dis­sera-lhe Martim perturbado, entrando por amor na verdade de uma criança.
Sentado na cama, com a cabeça entre as mãos, Martim fechou os olhos rindo muito emocionado. Era a alegria. Sua alegria vinha de que ele estava com fome, e quando um homem tem fome ele se alegra. Afinal uma pessoa se mede pela sua fome — não existe outro modo de se calcular. E a verdade é que na encosta a grande carência lhe renascera. Era estranho que ele não tivesse comida mas que se rejubilasse com a fome. Com o coração batendo de grande fome, Martim se deitou. Ouvia seu coração pedir, e riu alto, bestial, desamparado.
No dia seguinte Ermelinda cada vez mais sistemática voltou:
  O senhor pode pensar que sou doida, disse-lhe com o ar persistente dos cegos, mas tem um lugar dentro de mim onde vou quando quero dormir! ah, eu sei que isso é engraçado, mas é assim... Se esse lugar fosse perto, eu até podia dizer que ficava no canto esquerdo de minha cabeça — é que eu durmo deitada do lado esquerdo, explicou-lhe de passagem, lambendo os lábios — mas esse lugar é tão mais longe, é como se fosse muito depois que eu acabo. . . mas é ainda dentro de mim, sou eu ainda, entendeu?
Como eram os particulares detalhes de sua vida que a tor­navam, a seus próprios olhos, insubstituível por outra pessoa, ao descrever suas especialidades ela tentava com esforço provar ao homem que ela era ela mesma. Como Martim não a olhara, então arriscou-se ainda mais:
  É um lugar que fica depois de minha morte, disse afi­nal, e tornou-se de repente tão pálida que, levado a fitá-la por causa do silêncio inesperado da moça, ele deixou de sorrir sem saber por quê.
Mas Ermelinda bem sabia que ainda era cedo para deixar de mentir e deixar de encantá-lo. Sabia que era cedo para se mostrar a ele, e que poderia afugentá-lo se fosse verdadeira, as pessoas tinham tanto medo da verdade dos outros. Só por meios indiretos conseguiria. A idéia de que, se não o divertisse, ela o afugentaria, apavorava-a: logo agora que já ganhara tanto terreno a ponto de conseguir que ele a ouvisse, mesmo que não a olhasse! Então, receosa de ter ido adiante demais e de tê-lo espantado, ela riu muito e disse brincando:
  Sei que para ir a esse lugar aonde vou quando estou com sono, se toma a esquerda, é assim que eu consigo dormir, imagine! Às vezes, para não ficar nervosa, quero levar para o sono uma coisa comigo, uma coisa do dia, entende? um lenço para torcer na mão, um livro de missa, só para me dar seguran­ça e eu não ir sozinha, imagine só que bobinha que sou! disse com ternura, olhando-o bem fixo para ver se conseguira con­tagiá-lo com a ternura para consigo mesma. Mas não se pode levar coisa nenhuma ou alguém, senão não se vai. Parece um lugar só para se dormir ou para pensar. Eu, é claro, não quero nem gosto mesmo de voltar lá! Mas — disse desamparada — mas depois que a gente vai uma só vez, fica logo um vício. O senhor acredita — acrescentou gulosa — o senhor acredita que eu não consigo deixar de pensar no que penso? — mas não lhe disse no que pensava, e sentiu o prazer de quem se confessa à revelia de quem ouve, como se o roubasse enquanto ele dormia.
  O senhor por acaso consegue não pensar no que pensa? É, como se costuma dizer, uma obsessão! uma verdadeira obsessão!
  dizia tudo brincando, sem esquecer um instante que, num trabalho paciente e perfeito, devia sempre lisonjear o homem.
Mas sem também esquecer que tinha pressa. Ocorreu-lhe que, ao falar com ele, poderia sem querer deixar escapar o que ela era, e o homem então perceberia quanto ela precisava dele, e por isso não a quereria mais, como acontece com as pessoas. À simples possibilidade dele nunca vir a gostar dela, Ermelinda se arrepiou solitária, olhou os pássaros que voavam. Seu traba­lho junto ao homem foi sempre tão delicado, e exigiu tanta precisão, que ela não o saberia fazer se apenas o decidisse ou se lhe mandassem fazê-lo. Era um labor de infinita cautela, onde um passo mais e o homem jamais a amaria, onde um passo a mais e ela mesma talvez deixasse de amá-lo: ela protegia ambos contra o erro. E às vezes mais parecia proteger ambos contra a verdade.
  É como uma obsessão! Você acha que sou doida? per­guntou-lhe, pois ela sabia que vivia de uma idéia e que isso não era “normal”.
  Não.
  Mas as outras pessoas não parecem pensar que a mor­te. ..   — Ermelinda disfarçou depressa a palavra reveladora com um sorriso de faceirice. Não mesmo? indagou coquete, não sou doida, hein? Sou tão bobinha que o senhor nem pode ima­ginar!  disse-lhe como se lhe prometesse todo um futuro de atraente bobagem que ele perdia apenas porque queria.
  É doida porque fala, disse ele afinal, pesado.
  Ah, disse ela com o ar sabido de quem não se deixaria enganar, então já estou vendo tudo: você acha que sou doida! já vi tudo, você não me engana! disse toda risonha usando o “você” com intenção — mas seus olhos abertos estavam pen­sando em outra coisa.
Martim se lembrou de um homem que ele conhecera e que viajara sozinho durante muito tempo pelo interior e que, ao voltar, vivia falando sobre árvores e cobras e passarinhos, para o cansaço e a incompreensão de todos; até que o homem per­cebera que uma pessoa não fala sobre árvores e passarinhos e cobras, e parara de falar:
  Não, repetiu então olhando-a, e com um primeiro ca­rinho de curiosidade na voz, você não é doida. É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta — o homem parou e olhou-a, intrigado por ter falado tanto.
Ele nunca falara tanto, e o coração da moça começou a bater:
  Pois é, disse ela galante.
Com uma sabedoria instintiva, Ermelinda não demonstrou que notara o seu primeiro passo para ela, assim como não se dá um grito de alegria quando uma criança começa a andar para que esta não pare assustada por meses.
Quanto a ele, ele não percebia nada. Quanto a ele, aguar­dava com paciente ansiedade pelo momento de terminar o tra­balho.
Para ir — não ao terreno das plantas, não às vacas do curral — mas, com a incerta determinação de uma geléia viva, ir de novo à encosta para retomar cada dia o instante de sua formação do dia anterior. Onde ficava de pé, bastando-lhe estar de pé, sem saber o que fazer. Essa necessidade que uma pessoa tem de subir uma montanha — e olhar. Esse era o primeiro símbolo que ele tocara desde que saíra de casa: “subir uma montanha”. E neste obscuro ato ele se fecundava. Aquele lugar era um velho pensamento jamais formulado. Como se o pai de seu pai o tivesse aspirado. E como se da invenção de uma lenda antiga tivesse nascido aquela realidade. Aquele lugar já lhe tinha acontecido antes, não importava quando, talvez apenas em pro­messa e em invenção.
E só Deus sabe que Martim não sabia o que vinha fazer na encosta. Mas tanto é verdade que alguma coisa objetiva devia lhe estar acontecendo ali que — já que ele se habituara a reva­lidar sua própria natureza com o argumento final da natureza dos animais — que bastava ele se lembrar de como um boi fica de pé no morro. Olhando. Essa coisa objetiva como um ato: olhar. Às vezes também um cachorro olha, embora rápido e logo em seguida inquieto, pois um cachorro não tem tempo, ele precisa muito de carinho e é nervoso, e tem um sentimento aflito do tempo que passa, e tem nos olhos o peso de uma alma intransmissível, só o amor cura um cachorro. Mas acontece que aquele homem, por circunstâncias casuais, estava mais perto da natureza do boi, e olhava. Se é verdade que se lhe perguntassem para quê, não saberia responder, é também verdade que se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.
Oh, pode-se dizer que nada acontecia enquanto ele estava na encosta. E nem ele exigia ainda que algo acontecesse. Pare­cia bastar-lhe a tarde de luz rasgada, o ar nu e o espaço vazio. Até mesmo uma palavra pensada afundaria o ar. Ele se abstinha. Ali, existir já era uma ênfase. Como se já fossem uma audácia e um avanço uma pessoa estar de pé na claridade. E era como se ali Martim se tornasse o símbolo dele mesmo. Ele que, enfim, se encarnara em si próprio. Os passarinhos, escapulindo da luz, se mantinham dentro da escuridão dos galhos cheios. A claridade restava solitária, azul, fina. Era a tarde. E Martim olhava como se olhar fosse ser um homem. Ele gozava seu estado. Era uma generosidade do mundo para com ele. Rece­bia-a sem pejo. Pois, não se sabe por quê, ele não tinha mais vergonha.
Ao ponto de um dia, diante da claridade inóspita e sem nenhum sentido, ele ter enfim pensado, um pouco inquieto e avançando: “por Deus, se não criássemos um mundo, este mun­do apenas divino não nos receberia”. Foi quando começou a escurecer. Cachorros apareceram atentos ao longe. Os passari­nhos saíram da folhagem, e cada um se arriscou um pouco mais. Aos poucos o ar se adensou, os sentimentos começaram enfim a mostrar sua natureza pouco divina, um desejo profundamente confuso de ser amado misturou-se ao cheiro humano da noite, e um vago suor começou a porejar, espalhando seu cheiro bom e ruim de terra e de vacas e de rato e de axilas e de escuridão — esse furtivo modo como aos poucos tomamos conta da terra: tínhamos enfim criado um mundo e tínhamos lhe dado a nossa vontade. O máximo de claridade cedera à nossa habitada escuri­dão: seria isso talvez o que Martim cada dia aguardava ali em pé? Como se nesse vergar-se da claridade lhe ensinassem como se faz a união harmoniosa — não inteligível mas harmoniosa, não com uma finalidade mas harmoniosa — como se nesse ver­gar-se da claridade para a escuridão se fizesse enfim a união das plantas, das vacas e do homem que ele começara a ser. Cada vez, pois, que o dia se tornava noite, renovava-se o domínio do homem, e um passo era dado para a frente, às cegas, finalmente às cegas como é o avanço de uma pessoa no querer.
Martim não se indagou por que na encosta ele se comple­tava tão bem, ficando ele próprio harmonioso — ininteligível mas harmonioso — enquanto olhava a imortalidade do campo. Por enquanto isso lhe bastava. Um homem que andou muito tem o direito de ter um prazer inexplicável, harmonia apenas, mesmo sem entender — por enquanto sem entender. Pois, com tranqüila presunção, ele se dizia: “é cedo ainda”. Não era, porém, apenas presunção. É que agora ele aprendera a contar com o amadurecimento do tempo, assim como as vacas disso vivem taticamente. Ele agora parecia entender que não se podia brutalizar o tempo, e que o largo movimento deste era insubs­tituível por um movimento voluntário.
Assim, cada dia, quando se livrava das ordens de Vitória, ia esperar na encosta pela volta daquele instante quando, entor­pecido, se aproximara da fazenda pela primeira vez e pela pri­meira vez fora alertado. E de novo e de novo voltava. Repetir lhe parecia essencial. Cada vez que se repetia, algo se acres­centava.
Tanto que Martim já estava começando a se perturbar — ele era um homem, mas restava algo inquieto: que é que um homem faz?