A Maçã no Escuro

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Segunda parte: Nascimento do herói
Cinco

Com o decorrer dos dias, percebendo-o mais presente, as mulheres confundiram com estabilidade o ar moroso que Mar¬tim tomara e que vinha do fato de ele treinar instante por instante, com a cara estúpida de homem pensando, com a pa¬ciência dos sapateiros da gravura, um modo de abrir caminho. Certa então de que enfim receberia a resposta tranqüilizadora, Ermelinda perguntou-lhe com a segurança com que uma mulher estabelece domínios para se instalar com filhos:
—  Quanto tempo você fica?
—  Não sei, respondeu ele.
De novo Ermelinda se assustou. E como se seu estremeci¬mento se tivesse comunicado impalpável para Vitória, ambas mais ativas começaram a agir como se o tempo estivesse aca¬bando, Vitória se impacientava com as valas que mal progre¬diam, vigiava-o a cavalo. E um novo ritmo se sentiu no sítio.
E Martim? Martim trabalhava — olhava e trabalhava, pas-sando o mundo a limpo. Seu pensamento rude continuava no entanto a se ancorar obstinadamente no que ele considerava mais primário — de onde ele gradualmente passaria a com¬preender tudo, desde uma mulher que lhe perguntara durante anos “que horas são” até o sol que se erguia todos os dias e as pessoas então se levantavam da cama, compreender a pa¬ciência dos outros, compreender por que uma criança era o nosso investimento e a seta que disparamos. Seria isso o que ele queria? não se sabe propriamente. Ele por enquanto estava se moldando, e isso é sempre lento; ele estava dando forma ao que ele era, a vida se fazendo era difícil como arte se fazendo.
Tudo isso está se tornando pouco demonstrável. A verdade mais reconhecível por todos é que aquele homem estava con¬fuso. Como se disse, só a ambição persistente fazia com que ele não visse obstáculo num caminho que, pela graça da estu¬pidez, lhe era fácil. Sua grandiloqüência, no entanto, tinha al¬guma humildade: pois ele já chegara a aceitar que cada mo¬mento não tivesse força em si mesmo, começara a contar com a força acumulativa do tempo — “o decorrer de muitos momentos levá-lo-ia aonde ele queria chegar”. E assim sua humildade se tornou instrumento de paciência: ele trabalhava sem parar, as valas se abriam fundas.
A pequena população do sítio olhava para o céu, perscrutando e trabalhando. Tudo estremecia num calor que aumentava gradativamente sem que se sentissem suas transições. Os ramos tremiam, o calor duplicava cada objeto em refração fulgurada. Do fundo de seu próprio mistério, Martim olhava as plantas que no seu viço inocente ainda não pareciam sentir a ameaça que o sol rubro chispava: a seca. Ele olhava. Agora que tinha coragem — tudo era dele, o que não era nada fácil. Olhava, por exemplo, a campina que se tornara seu campo de batalha, e não havia uma brecha por onde entrar no que lhe pertencia. O que via apenas? que tudo era um prolongamento suave de tudo, o que existia unia-se ao que existia, as curvas se faziam repletas, harmoniosas, o vento comia as areias, batia inútil contra as pedras. É bem verdade que, de um modo estranho, quando não se entendia, tudo se tornava evidente e harmonioso, a coisa era bastante explícita. No entanto, olhando, ele tinha dificuldade de compreender aquela evidência de sentido, como se tivesse que divisar uma luz dentro de uma luz.
E foi desse modo que Martim de vez em quando se perdeu de seus objetivos. Houvera mesmo uma finalidade planejada, ou ele apenas seguia uma necessidade incerta? até que ponto estava ele determinando? Martim bem poderia chegar rapida¬mente a uma conclusão. Mas se você se purificou, o caminho se torna longo. E se o caminho é longo, a pessoa pode esquecer para onde ia e ficar no meio do caminho olhando deslumbrado uma pedrinha ou lambendo com piedade os pés feridos pela dor de andar ou sentando-se um instante só para esperar um pouquinho. O caminho era duro e bonito; a tentação era a beleza.
E com isso se quer dizer que nesse ínterim alguma coisa acontecera.
Uma coisa insidiosa começara a roer a viga mestra. E era algo com o qual Martim não contara. É que ele começava a amar o que via.
Livre, pela primeira vez livre, que fez Martim? Fez o que pessoas presas fazem: amava o vento áspero, amava o seu tra¬balho nas valas. Como um homem que tivesse marcado o grande encontro de sua vida e jamais chegasse porque se distraísse leso examinando folhinhas verdes. Era assim que ele amava e se perdia. E o pior é que amava sem ter uma razão concreta. Apenas por que uma pessoa que nascia, amava? e sem saber para quê. Agora que criara com suas próprias mãos a opor¬tunidade de não ser mais vítima nem algoz, de estar fora do mundo e não precisar mais perturbar-se com a piedade nem com o amor, de não precisar mais castigar nem castigar-se — inesperadamente nascia o amor pelo mundo. E o perigo disso é que, se não tomasse cuidado, ele teria desistido de ir adiante.
Porque também uma outra coisa acontecera, tão importante e grave e real como a tristeza ou a dor ou a cólera: ele estava contente.
Martim estava contente. Não previra esse obstáculo a mais: a luta contra o prazer. Estava gostando demais das minúcias do curral. Com surpresa, ele se satisfazia com tão pouco: em executar tarefas... Bastava-lhe tanto ser uma pessoa que acorda de manhã. Bastava-lhe o céu quase escuro. E a terra enevoada e as árvores frescas, e ele tinha aprendido a tirar leite das vacas que na madrugada mugiam mornas. Assim: eu sou um homem que tira leite das vacas. A corrente da graça era forte de manhã, e ter um corpo que vivia bastava. Se ele não tomasse cuidado, se sentiria dono. Se não tomasse cuidado, uma árvore mais alta o faria se sentir completo, e um prato de comida o compraria no momento de sua fome e ele se agre¬garia a seus inimigos que eram comprados pela comida e pela beleza. Inquieto, ele se sentia culpado se não transformasse, pelo menos com o pensamento, o mundo em que vivia. Martim estava se perdendo. ‘‘Houvera mesmo uma finalidade?” Agora já lhe acontecia ter uma vaidade admirativa e benevolente em relação a suas “escapadas”, e visualizar-se como um grande cavalo que temos em casa e que de vez em quando dá suas voltas fantásticas por aí, impunemente livre, guiado pela beleza da contenção de espírito que equivale ao modo como o nosso corpo não se desagrega. Exercícios de viver. Martim estava tendo prazer em si mesmo. Miseravelmente, apenas isso. Como se vê, mais feliz ele não poderia estar.
Foi com esforço sobre-humano que Martim procurou ven¬cer cada dia a vaidade de pertencer a um campo tão grande que crescia sem sentido; foi com austeridade que ele venceu o gosto que tinha pela harmonia oca. Com esforço se sobrepujava, obrigando-se — contra a corrente que o arrastava na sua graça — a não trair o seu crime. Como se, com o contentamento, ele estivesse apunhalando a sua própria revolta. Então forçava-se duramente a não esquecer o seu compromisso. E de novo punha-se por dentro em estado espiritual de trabalho: uma espécie de transe em que aprendera a cair quando precisava.
Seu estado de trabalho consistia em tomar uma atitude besta de pureza e vulnerabilidade. Aprendera a técnica de ficar vulnerável e alerta, com cara de idiota. Não era nada fácil, até muito difícil. Até que — até que atingia certa imbecilidade de que precisava. Como ponto de partida, criava para si uma ati¬tude de pasmo, tornava-se indefeso, sem nenhuma arma na mão; ele que não queria sequer usar instrumentos; queria ser o seu próprio instrumento, e de mãos nuas. Porque, afinal, cometera um crime para ficar exposto.
Mas se essa tentativa de inocência o levava a uma objeti¬vidade, era à objetividade de uma vaca: sem palavras. E ele era um homem que precisava de palavras. Então, com paciência, corrigia o exagero de sua imbecilidade: “é preciso também não me forçar a ser mais burro do que sou”, pois também não havia lá tantas vantagens em ser imbecil, era preciso não esquecer que o mundo também não era só dos imbecis. Tomou, pois, como novo método de trabalho, o caminho oposto e assumiu uma atitude resoluta que lembrava um desafio. Essa atitude não foi difícil ter. Porém mais que ela, não conseguiu — e todo dis¬posto como um homem que se embala para uma corrida de um quilômetro e esbarra com o fato de ter apenas dois metros para correr — ele desinchou desapontado. Revelou-se que a atitude de deixar de ser imbecil fora tarefa acima de sua capacidade real de deixar de sê-lo.
É verdade que quando lhe ocorria que o fim não estava longe, ele já não precisava mais se fustigar ou criar técnicas para continuar sua tarefa monstruosa. Quando lhe ocorria que tinha que ter violentamente tudo, e a “revelação” também — de novo sua pressa se tornava perfeita, tranqüila e concentrada como a dos sapateiros embaixo da caldeira. E seu próprio contentamento parecia fazer parte necessária do lento trabalho de artesão.
Oh ele estava muito desamparado. Simplesmente não sabia como se aproximar do que queria. Perdera o estágio em que tivera a dimensão de um bicho, e no qual a compreensão era silenciosa assim como uma mão pega uma coisa. E também já perdera aquele momento quando, no alto da encosta, só lhe fal¬tara mesmo a palavra — tudo estivera tão perfeito e tão quase humano que ele dissera a si mesmo: fala! e só faltara a palavra. Em que ponto estava agora? No ponto em que estivera antes do crime: como antes, ele era algo que talvez tivesse um sen¬tido se fosse olhado de uma distância que o colocasse na pro¬porção de uma folha de árvore. Visto de perto, ele era grande demais ou deixava de se enxergar. No fundo, ele era nada. E foi com esforço que ele se deu alguma importância: ele só vivia uma vez.
E o fato é que agora era tarde demais: apesar do conten¬tamento, teria que continuar. Não só porque era obrigado a salvar seu crime. Mas porque, mesmo aos recuos, ele sentia que avançava.
Sentia que — pois é — que quase entendia. É verdade que, por um erro de cálculo, começara pelo começo demais; é verdade que o verde das ervas era tão violento que seus olhos não podiam traduzi-lo; é verdade que já ocorria ao homem ter destruído o mundo para jamais recebê-lo inteiro de novo, nem mesmo uma só vez como se recebe a extrema-unção. Tudo isso era verdade, sim. Mas é que às vezes a resistência parecia pres¬tes a ceder...
Havia uma resistência tranqüila em tudo. Uma resistência imaterial como tentar lembrar-se e não conseguir. Mas assim como a lembrança estava na ponta da língua, assim a resistência parecia prestes a ceder. Foi assim que, na manhã seguinte, ao abrir a porta do depósito à frescura da manhã, ele sentiu a resistência cedendo. O ar da manhã limpa estremecia nos arbus¬tos, a xícara rachada de café ligou-se à manhã sem névoa, as folhas das palmeiras luziam escuras; a cara das pessoas estava avermelhada pelo vento como a de uma nova raça andando pelo campo; todo o mundo trabalhando sem pressa e sem parar; a fumaça amarela saía do fundo da cerca. E, por Deus, isso tem que ser mais que a grande beleza, tinha que ser. Então, com escrúpulos, a resistência cedendo, ele quase compreendeu. Com escrúpulos como se não tivesse direito de usar certos processos. Como se estivesse compreendendo alguma coisa inteiramente incompreensível assim como a Santa Trindade, e hesitasse. Hesi¬tasse porque soubesse que depois de compreender, seria de algum modo irremediável. Compreender podia se tornar um pacto com a solidão.
Mas como escapar à tentação de entender? sem conseguir vencer certa sensualidade, ele entendeu. Para não se comprome¬ter de todo, tornou-se enigmático, a fim de poder recuar logo que se tornasse mais perigoso. Então, cuidadoso e sonso, ele entendeu assim: “Como se impedir de compreender, se uma pessoa sabe tão bem quando uma coisa está ali!”, e a coisa estava ali, ele sabia, a coisa estava ali. “Sim, assim era, e havia o futuro.” O largo futuro que tinha começado desde o começo dos séculos e do qual é inútil fugir, pois somos parte dele, e “é inútil fugir porque alguma coisa será”, pensou o homem bas¬tante confuso. E quando for — oh como poderia ele se explicar diante de uma manhã tão inocente? — “e quando for, então será”, disse ele humilhado com o pouco que dizia. E quando for, o homem que nascer se espantará de que antes... “Mas quem sabe se já não é?”, ocorreu a Martim com grande argúcia. “Acho até que já é”, concluiu com dignidade de pensamento. Então, de algum modo satisfeito, tomou uma atitude oficial de meditação. Ele meditou, enquanto olhava a manhã no campo. E quem há de jamais responder por que borboletas num campo alargam em compreensão obscura a vista de um homem?
Foi assim que por meios escusos Martim alcançou enfim um estado, pulando como um herói por cima de si mesmo. E foi assim que, por meios impossíveis de se recapitular, ele ter¬minou finalmente por se livrar do começo dos começos — onde por inépcia se enganchara tanto tempo. Uma fase se encerrara, a mais difícil.

A Maçã no Escuro

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Segunda parte: Nascimento do herói
Quatro

Nesse intervalo amanheceu.
E abrindo a primeira vala na luz da manhã, ao mesmo tempo que as mãos grossas lhe obedeciam, Martim já começara a se aplicar num trabalho de infinita exatidão e vigilância. Que era o de açambarcar-se e, consigo, o mundo? Era isso mesmo o que ele fazia? Mas será realmente importante saber o que ele fazia? Ele estava fazendo um sonho — que era o único modo como a verdade podia vir a ele e como ele podia vivê-la. Será então indispensável entender perfeitamente o que lhe acontecia? Se nós profundamente o entendemos, precisamos também entendê-lo superficialmente? Se reconhecemos no seu mover-se lento o nosso próprio formar-se — assim como se reconhece um lugar onde pelo menos uma vez se esteve — será necessário traduzi-lo em palavras que nos comprometem?
Às cegas, embora, e tendo como bússola apenas a intenção, Martim parecia querer começar pelo exato começo. E re¬construir a seu modo pela primeira pedra, até que chegasse ao instante em que houvera o grande desvio — qual fora o seu impalpável erro como homem? Até que chegasse de novo ao instante em que o grande equívoco uma vez se dera provocando a vastidão inútil do mundo. E quando, refeito pouco a pouco o caminho já andado, ele chegasse ao ponto em que o erro acontecera, então ele tomaria a direção oposta ao desvio. Na luz da manhã pareceu-lhe simples assim, e ele estava tão fresco e limpo como um menino que vai de manhã cedo à escola. Na luz da manhã pareceu-lhe simples assim: quando o mundo estivesse refeito dentro dele, ele então saberia agir. E sua ação não seria a ação abstrata do pensamento, mas a real.
Qual? “Qualquer que fosse”, disse ele com insolência tranqüila. E se o tempo fosse curto, se Vitória o denunciasse antes dele estar pronto, e não lhe sobrasse liberdade para a ação — ele pelo menos teria chegado a saber qual é a ação de um homem. E isso também era um máximo. (Oh, bem foi avisado que se explicasse ninguém entenderia, pois explicando como é que um pé segue o outro ninguém reconhece o andar.) Oh havia pouco tempo, sim, ele sabia. Quase podia ouvir o enorme silêncio com que ponteiros de relógio avançavam. Mas não se sentia revoltado por ser o guardião de tempo tão curto: o tempo de uma vida inteira também seria curto. Aquele homem já aceitara a grande contingência.
No primeiro dia, pois, ele pediu de si mesmo apenas a objetividade. O que se tornou uma fonte de cuidados e enganos. Por exemplo, um passarinho estava cantando. Mas do momento em que Martim tentou concretizá-lo, o passarinho deixou de ser um símbolo e de repente não era mais aquilo que se pode chamar de passarinho. Para compensá-lo, os galos e galinhas se tornaram a seus olhos rigorosos o próprio dia: andavam apressados, brancos entre a fumaça, a manhã de sol, se Martim não fosse rápido a perderia, os galos corriam, às vezes abriam as asas, galinhas sem ocupação dos ovos eram livres, tudo isso era a própria manhã e quem não fosse rápido a perderia — a objetividade era um vertiginoso relance. Martim logo aprendeu a questão do ritmo: quando seus olhos tentavam mais do que descrever as coisas, de seu esforço restava uma forma vazia de galo. Aliás, no seu trabalho de construção da reali¬dade, havia em desfavor de Martim a novidade das coisas não serem mais óbvias; ele esbarrava a cada momento. Contra si, também, havia a consciência do tempo preciso. Embora Martim tivesse uma grande vantagem: se a vida era curta, os dias eram longos. Ainda a seu favor ele tinha o fato de saber que devia andar em linha reta, pois seria pouco prático perder o fio da meada. A seu desfavor tinha um perigo à espreita: é que havia um gosto e uma beleza em uma pessoa se perder. A seu desfavor tinha ainda o fato de entender pouco. Mas sobretudo a seu favor tinha o fato de que não entender era o seu limpo ponto de partida.
Está bem: isso era uma primeira tentativa de reconstrução e com um limpo ponto de partida.
Mas — mas teria ele começado demais pelo começo?
Pois olhou para o campo vazio e pareceu-lhe que remontara à criação do mundo. No seu pulo para trás, por um erro de cálculo tinha recuado demais — e por um erro de cálculo pareceu-lhe que se colocara inconfortavelmente em face da primeira perplexidade de um macaco. Como macaco, pelo menos seria suprido pela sabedoria que faria com que ele se coçasse e com que o campo fosse gradualmente alcançável aos saltos. Mas ele não tinha os recursos de um macaco.
Teria começado excessivamente pelo começo? E depois acontece que, apesar de seu heroísmo, havia uma questão prá¬tica: ele não tinha tempo material de começar de tão longe. Já era pouco o tempo que lhe restava para percorrer o que lhe levara quase quarenta anos para andar; e não só para percorrer de um modo novo o caminho já andado, mas para fazer o que não pudera fazer até então: atingindo a compreensão, ultra¬passá-la aplicando-a. Já para isso era pouco o tempo. Quanto mais para começar, por assim dizer, do nada! No entanto, se quisesse ser leal para com a própria necessidade, não poderia enganá-la: tinha que começar pelo começo primeiro.
O que, cavando e cavando, de repente lhe pareceu de novo fácil. Pois cada minuto podia ser o tempo inteiro — se uma pessoa estivesse bastante livre para atender a esse minuto. Martim sabia disso porque uma vez, em um minuto já perdido, ele aceitara a cólera, e um caminho se abrira como um destino em um minuto. E mais tarde, em um minuto, ele não tivera medo de ser grande; e sem pudor, em um minuto, aceitara, como sendo seu, o papel de homem.
Foi assim, pois, que já tendo perdido na montanha a primeira modéstia, Martim foi perdendo sem sentir as derradeiras amarras, até que já não era monstruoso uma pessoa se dar função de pessoa e de “reconstruir”. O que lhe pareceu facílimo. Até hoje tudo o que vira fora para não ver, tudo o que fizera fora para não fazer, tudo o que sentira fora para não sentir. Hoje, que se rebentassem seus olhos, mas eles veriam. Ele que nunca tinha encarado nada de frente. Poucas pessoas teriam tido a oportunidade de reconstruir em seus próprios termos a existência. À nous deux, disse de repente interrompendo o trabalho e olhando. Porque era só começar.
Mas como se tivesse tido um sonho infantil olhou de novo o passarinho que cantava e se disse: que faço dele?
Pois já na sua primeira visão um passarinho não cabia. Tudo lhe fora dado, sim. Mas desmontado e aos pedaços. E ele, com peças sobrando na mão, não pareceu saber como montar a coisa de novo. Tudo era dele para o que quisesse fazer. No en¬tanto a própria liberdade o desamparava. Como se Deus tivesse atendido demais o seu pedido e lhe entregasse tudo. Mas tivesse ao mesmo tempo se retirado. A campina era toda de Martim, e mais um passarinho que cantava. E dele também, nesse tempo curto, era a vida inteira. E ninguém e nada podia ajudá-lo: fora exatamente isso o que ele próprio preparara com cuidado, e até com um crime preparara. Mas se astuciosamente come¬çara pelo mais fácil — que mais simples que um passarinho? — então perguntou-se embaraçado: que faço de um passarinho cantando?
Olhou então o passarinho com severidade. Mas ele — ele não soube deduzir. É verdade que, concentrado e cheio de muito boa vontade, à força de fixar o passarinho, conseguiu uma tensão máxima que se assemelhou a uma sensação de beleza. Mas só isso. Nada mais. Ver o passarinho cantando seria o limite de sua intuição? dois-e-dois-são-quatro é o grande pulo que um homem pode dar?
Como se vê, esse primeiro dia de objetividade foi sonambúlico. Se ele procurasse passar do espírito de geometria para o de finesse, as coisas obstinadamente não tinham uma finesse alcançável pela sua grande boca e pelas suas mãos pouco hábeis. Foi, pois, grande esforço espiritual o seu. E um pouco chato. O que lhe valeu é que ele tinha a teimosia dos que, não sendo bastante previdentes para enxergar a dificuldade, não vêem obstáculos. O que também lhe valeu é que, tendo se habituado ao fato de não ser brilhante, pensou que mais uma vez a dificuldade era apenas sua; de modo que se forçou. Até que chegou a um ponto de responsabilidade preocupada em que lhe pareceu que se ele não estivesse consciente de que as flores cresciam, as flores não cresceriam.
No entanto — no entanto, nesse mesmo dia houve momentos em que, à força de se aplicar em procurar entender, foi como se, batendo com uma vara na terra seca, ele sentisse que ali havia água. É verdade, também, que aí parava o seu engenho.
Foi de noite que Martim teve um pensamento mais ou menos assim: se a história de uma pessoa não seria sempre a história de seu fracasso. Através do qual. . . o quê? através do qual, ponto. Em seguida, relutante em utilizar esse pensamento, refugiou-se no pensamento sobre seu filho. Pois o amor pelo seu filho era uma das verdades de que ele mais gostava.