A Maçã no Escuro

sexta-feira, maio 04, 2012

Primeira parte: Como se faz um homem
Sete

Era a quente e inexpressiva cara de um homem — e uma tarde Ermelinda olhou para Martim espantada de vê-lo tão con¬creto no meio da vaguidão do campo. Materializando o vasto espanto que ela nunca sabia bem em que aplicar — ela então se espantou da coincidência daquele homem estar exatamente no sítio, e se espantou da coincidência extremamente curiosa dela mesma estar no sítio. Mas — pensou forçando-se a alguma modéstia — não há um fato que não se ligue a outro, sempre há uma grande coincidência nas coisas. Logo na primeira semana Ermelinda se apaixonou por Martim. Em primeiro lugar porque ele era um homem e ela por assim dizer nunca se apaixonara, senão de outras vezes que não contam. E depois porque Martim, sem o saber, era homem junto do qual uma mulher não se sentia humilhada: ele não tinha vergonha. Ela estava sentada de tarde debulhando milho.
O fato de ter aceito a tarefa já fora talvez um começo da necessidade de estar sozinha e deixar-se ficar absorta. Ficar absorta era o modo usual como Ermelinda chamava “estar pensando”. Nessa tarde, de onde Ermelinda o via, a distância tornava o homem um ponto negro que a moça fixamente acompanhou como único ponto de referência no campo. Até que sua visão se ofuscou pela claridade, e milhares de pontos negros e luminosos fizeram-na fechar os olhos como se o homem se tivesse esti¬lhaçado. Quando reabriu os olhos agora penumbrosos, o campo es¬tava de novo vazio: Martim desaparecera. O que lhe restou a ver foram os passarinhos odiados voando calmos. E as ervas altas e mal-assombradas estremecendo à menor hesitação da brisa. Tudo se tornara de novo antena sensível ao que jamais chegava a ser dito. Como numa visitação, com ânsia de espera Ermelinda olhou. Estava muito pensativa. Foi a essa altura que Martim apareceu de novo no seu campo de visão.
Ele, o homem concreto que parecia impedir que as coisas voassem. Pois o modo de ver de Ermelinda costumava deixar tudo tão instável e leve como ela própria. Ele, o homem, reapareceu. Assegurando a realidade. E aquele corpo grosseiro contrabalançava a suavidade do milharal, a suavidade das mu¬lheres e das flores. Com a firmeza ingênua que um homem tem, e que é a sua força, ele contrabalançava a nauseante delicadeza da morte. Aquela firmeza inocente que mesmo o marido de Ermelinda tivera, mesmo Francisco, mesmo todos os outros ho¬mens que haviam temporariamente trabalhado no sítio.
Com uma solidez que ignorava o próprio valor, o corpo estúpido de Martim parecia garantir que nunca a morte, a morte delicadíssima, venceria. E a força do homem justificava que ela, Ermelinda, fosse tão suave — essa suavidade que sem um homem era tão gratuita como uma flor e, como uma flor, parecia se dar ao nada, e o nada era a morte espalhada com tal sutileza que até parecia vida. Ermelinda não estava pensando em nada: estava absorta. Com o rosto inclinado, descaroçou automaticamente o mi¬lho. E distinta das marteladas de Martim — que ela ouvia uma a uma, esperando em doce tortura pela próxima — ela se disse com o maior cuidado, no começo de uma sensação de exasperante prazer que ela temeu destruir se lhe desse mais força: “mas quem está falando em morte, mulher? estou tão viva”, disse ela como se fruísse de um desfalecimento e de um coração no campo. Seu rosto inclinado para o milho não via Martim. Mas a cada martelada ele dava enfim matéria ao campo desfral¬dado, e dava ao corpo daquela moça, tão vago, um corpo. Erme¬linda sentiu uma moleza envergonhada contra a qual, sem mo¬tivo nenhum, lutou erguendo a cabeça com certo brio. É verdade que seu desafio não conseguiu se sustentar por muito tempo, e aos poucos a cabeça pesada de novo se inclinou meditando. Os dedos mecânicos continuaram pois a trabalhar. Mas às vezes ela fazia um leve movimento de cabeça, muito quieto e bonito, como se afastasse uma mosca. Meditar era olhar o vazio.
A moça meditava. Foi então que levantou a cabeça e fitou o ar com alguma intensidade. É que alguma coisa branca e insidiosa se misturara a seu sangue, e ela se lembrou de como se falava de amor como de um veneno, e concordou submissa. Era alguma coisa adoci¬cada e cheia de mal-estar. Que ela, conivente, reconheceu com suavidade supliciada como uma mulher que apertando os dentes reconhece com altivez o primeiro sinal de que a criança vai nascer. Reconheceu, pois, com alegria e impassível resignação, o ritual que se fazia nela. Então suspirou: era a gravidade pela qual ela esperara a vida inteira. Depois, como uma mulher que se torna desordenadamente ativa em momentos críticos, imprimiu mais força na espiga crua, vários caroços tombaram, um relinchar de cavalo atravessou o campo e Francisco deu-lhe ordem de parada, vários caroços tom¬baram na lata. Era alguma coisa que seria amor ou não seria. Caberia a ela, entre milhares de segundos, dar a leve ênfase de que o amor apenas carecia para ser. Ermelinda parou com a espiga na mão, sua cabeça rodava um pouco, satisfeita, vexada. Porque, num segundo perdido en¬tre milhares de outros na vastidão do campo, sujeita à lei da única célula que se fecunda entre as que fenecem, ela acabara de saber, como se escolhesse, que o amava. Não diretamente, pois não era moça com hábitos de coragem. Mas deste modo ela escolhera saber que o amava: “estou viva”, pensara ela. E ao pensar “estou viva” tomara pela primeira vez consciência de que antes também pensara na morte, e que também pensara no homem.
A ignorância de seu próprio processo deu-lhe a surpresa da inocência. E somente então percebeu que agora era tarde demais, que só poderia amá-lo. Dolorosamente, altivamente, perdera para sempre a possibilidade de resolver. Com alívio, como quando é tarde demais. Um segundo antes ainda poderia não amá-lo. Mas agora, suavemente, vaidosamente: nunca mais. No mesmo instante teve uma sensação de tragédia. E agora era tarde demais — qualquer que tivesse sido o sentimento gerador, este para sempre se volatizara. Era tarde demais: a dor ficara na carne como quando a abelha já está longe. A dor, tão reconhecível, ficara. Mas para suportá-la fo¬mos feitos. Um pouco espantada, o calor da tarde então envolveu-a, inquieto, pesado. Nada se transformara no campo que continuou cheio de imóvel sol. No entanto por um instante a moça não o reconheceu e não se reconheceu, e se se olhasse ao espelho veria grandes olhos olhando-a mas não se veria. Com a acuidade da estranheza, notou na própria mão uma veia que havia anos não notava, e viu que tinha dedos magros e curtos, e viu uma saia cobrindo os joelhos. E sob tudo o que ela era, sentiu alguma coisa: sua própria atenção. Um pouco aflita, olhou em torno. Por uma obscura necessidade de preservação, estava procurando recuperar no campo aquele minuto em que ela ousadamente aceitara amar o homem: procurava recuperar o minuto para des¬truí-lo. Mas, estonteada, talvez soubesse que também a neces¬sidade de destruir amor era o próprio amor porque amor é tam¬bém luta contra amor, e se ela o soube é porque uma pessoa sabe. Procurou, desesperada e ofendida, aquele minuto que já agora nunca mais ela saberia se fora fatal a ponto de submetê-la — ou se nesse minuto ela própria fora tão extremamente livre que, numa gratuidade que já era pecado e que depois se pagava, ela o apontara.
Procurou recuperar o instante para destruí-lo, mas isso foi penoso e inútil. Pois tudo acontecera rápido demais. E a moça ficou apenas com o seguinte: com um balde cheio de caroços de milho, sem ter sequer contra o que lutar. E tão abandonada, e tão solitária, como se tudo o que no futuro se fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória que há muito já se perdera para sempre entre as mar¬teladas. Essas marteladas que a moça, agora emergida e espan¬tada, ouviu mais fortes e mais próximas, fatais, fatais, fatais. Sua estranha liberdade: ela escolhera ir de encontro ao fatal. Era a gravidade pela qual esperara a vida toda. De novo um senso de tragédia a envolveu. E, estranhamente, dentro desta ela era apenas anônima. Olhou então as moscas sobre a roseira. A graça do que ela estava vivendo encheu-a de modéstia cristã, e ela humilde¬mente procurou apoio moral nas moscas que por dentro eram azuis. Mas o que viu apenas foram moscas azuladas e a rosa trêmula pela mosca que acabara de deixá-la trêmula. Depois que por um instante o mundo inteiro se tornara seu cúmplice, a moça fora largada por sua própria conta. Então abaixou a cabeça e retomou o trabalho: os caroços de milho tombaram na lata cadenciadamente, gota dura por gota dura. O sol se alargara subitamente em grande luz, o vento quente soprou. Mas alguma coisa certamente acontecera. Por¬que o grito da mulata no fundo da casa crispou o rosto da moça como se o tivesse ferido. Inconfortável dentro da inesperada grandeza que sua vida tomara, a moça fingiu não perceber nada. Depois, revoltada e refugiando-se na consoladora mesquinharia, onde pelo menos ela era ela própria, ela se disse em desafio: “se não cuidar de mim, ninguém cuida! vou é tomar mais leite para me fortificar que não sou tola!”, disse com brutalidade. Mas ao que disse, ela própria abaixou uma cabeça inteiramente distraída, respirando, respirando.
Depois enxugou o suor. — A cerca ainda não foi consertada! disse neste momento Vitória a Martim. Ermelinda estremeceu espantada pelo fato de alguém falar com o homem: ela não o imaginara, então! Ressentiu-se com a intrusão do estranho como se ele tivesse se imiscuído no amor que acabara de nascer. — A cerca está em pedaços, acrescentou Vitória exigente. Martim jamais parecia se perturbar por ter que interromper o trabalho que apenas começara e iniciar outro: começava a nova tarefa com a mesma indiferença concentrada com que fora perfeito no trabalho anterior. — O senhor não prefere acabar antes o que está fazendo? sugeriu Vitória afinal, ela mesma tendo que suprir o argumento que ele não dera. Mas ele não parecia se surpreender com coisa alguma do que Vitória pudesse lhe dizer. A princípio a obediência com que ele a ouvia deu a Vitória uma escura raiva no peito. Nas suas fantasias, Vitória tinha a impressão de que, se dissesse ao ho¬mem: “de noite eu durmo embaixo da cama”, ele responderia: “pois não, minha senhora”. O fato dele admitir nela o que quer que fosse e as ordens mais contraditórias, ofendia-a; e, pior ainda, isso tirava sub-repticiamente uma viga do heroísmo vago de que ela vivia e cujos motivos já se haviam perdido. Mas, aos poucos, foi sendo envolvida pelo modo como ele admitia tudo nela ou em si mesmo. Era como se ele dissesse: “não vejo mal nem bem em se dormir embaixo da cama”. Pouco à vontade, ela não conseguiu descobrir o mal que haveria em dormir sob uma cama: a mulher piscou os olhos, perturbada. A solidez e a calma do homem não lhe transmitiam nem solidez nem calma — irritavam-na apenas. Quanto ao homem, seus músculos trabalhavam com exatidão, lentidão e certeza. E nada o alterava como se ele carregasse consigo, em defesa intransponível pelos outros, o grande silêncio das plantas de seu terreno terciário. Para as quais voltava todas as tardes como um homem volta à sua casa.

E onde ficava sentado sobre uma pedra. E lá era bom. Lá nenhuma planta sabia quem ele era; e ele não sabia quem ele era; e ele não sabia o que as plantas eram; e as plantas não sabiam o que elas eram. E todos no entanto estavam tão vivos quanto se pode estar vivo: esta provavelmente era a grande meditação daquele homem. Assim como o sol brilha e assim como rato é apenas um passo além da grossa folha espalmada daquela planta — esta era a sua meditação. Martim tinha olhos azuis e sobrancelhas baixas; seus pés e mãos eram grandes. Tratava-se de um homem pesado, com uma idéia na cabeça. Tinha uma presença móvel, atenciosa, como se só fosse replicar depois de ouvir tudo. Esse era o seu lado verdadeiro, e também o seu lado de fora, visível pelos outros. Por dentro — custando muito mais a atingir a sua forma exterior que o precedera — por dentro ele era um homem de compreensão lenta, o que no fundo era uma paciência, um homem com um modo de pensar atrapalhado que às vezes, num sorriso embaraçado de criança, se sentia intimidado pela própria estupidez, como se ele não merecesse tanto: é verdade que por dentro ele também era sagaz, com uma possibilidade sempre pronta a tirar proveito e vantagem.
O que no passado o levara a ignorar vários escrúpulos e a fazer vários atos que seriam pecaminosos se ele fosse uma pessoa importante. Mas ele era uma dessas pessoas que morrem sem se saber o que realmente aconteceu com elas. Na verdade, sentado na pedra de seu reinado, sua medita¬ção por assim dizer se reduzia a ser um homem de pés grandes sentado numa pedra. O que ele não notou é que já estava começando a tomar algum cuidado em ser exatamente apenas aquilo que ele estava sendo. No seu alerta adormecimento às vezes um pensamento já faiscava nele como numa lasca de pedra: — A região é árida, meditava ele com bastante profundeza. Todavia o carvão existe, parecia ele pensar, sentado ereto na pedra. Constatar era de uma surda virilidade. E era como se um homem, sabendo esperar sentado na pedra, pois bem! se um homem soubesse esperar sentado numa pedra, então a umidade favorecia o apodrecimento de raízes, nozes, frutos e sementes. Essa lógica obscura lhe parecia perfeita e suficiente. Sentado na pedra, ele também se sentia satisfeito pelo fato de agora saber trabalhar tão bem no campo. Seu conhecimento era pouco, mas suas mãos tinham ganho uma sabedoria. “Um homem é lento e demora muito para entender suas mãos”, pensou ele olhando-as. Seus pensamentos eram quase que voluntariamente enigmáticos. E no seu terreno ele sentia aquele prazer que em certos momentos nulos se sente, como se tudo na ver¬dade fosse essencialmente feito de prazer.
A planta, por exemplo, era apenas prazer. É verdade que às vezes a intensa quietude das plantas já parecia surdamente perturbá-lo, e dava-lhe uma primeira inquie¬tação. Então ele mudava a posição das pernas, paciente, sem entender. Não se dava conta de que ali estava lentamente fabri¬cando a sua primeira flecha e polindo o seu primeiro dardo. Nem se deu conta de que já era totalmente diferente daque¬le homem que olhara o terreno de madrugada. Não se deu conta de que, mudando tantas vezes a posição das pernas, estava tendo a sua primeira impaciência, ao olhar esse mundo pronto para ser caçado. Obscuramente, inquietava-se por começar a se sentir superior às plantas, e por sentir-se de algum modo homem em relação a elas. Pois só homem era impaciente: ele então mudou de novo a posição das pernas. E mais: só um homem se orgulhava da própria impaciência. Como ele, mudando de novo a posição das pernas, perturbadoramente se orgulhou.
Era uma vaidade generalizada que às vezes o tomava, e que ainda não se embaraçava por existir ao mesmo tempo que a prudência em não se arriscar além da sonolência asseguradora do terreno do depósito. Asseguradora mas já não suficiente. O homem estava incomodamente crescendo. Mas essa inquietação quase apenas física sucedia-lhe apenas por instantes. E ainda lhe acontecia tão distante dele próprio que ainda não alterara a inteireza do sistema de mundo em que ele se movia. E, em breve, com o grande prazer que existe na contenção da própria energia, de novo ele se punha em estado de “pouco saber”. Pois essa era a condição essencial ao terreno. Em não saber, havia no homem uma alegria sem sorriso assim como a planta se cumpre, grossa. Às vezes aquele homem, a quem sempre haviam escapado elos importantes, pegava na terra como uma pessoa que possui uma terra. E ficava com o punhado de terra na mão. Bronco, com a terra na mão; como melhor forma de ser. Quais eram os pensamentos daquele homem? Eram pensamentos apenas pro¬fundos, satisfatórios e substanciais. Uma tarde ele chegou ao ponto de pensar assim: — A fauna extinta é uma legião. Esse era o tipo de pensamento sem contestação possível. Ainda nesse mesmo dia ele pensou assim: — Há mais de um bilhão de anos, uma vez... — Martim não estava informado de quanto tempo exato existia atrás dele, mas como não havia ali ninguém que o impedisse de errar, ele se aprumou impassível, grande. E continuou a fazer constatações da melhor qualidade. Por exemplo, outra vez pensou assim: “sob dois metros de despojos, talvez haja aqui um crânio de mastodonte”. Pensar se transformara agora num modo de se esfregar no chão. Foi, pois, com o prazer mais legítimo da meditação que ele numa tarde se lembrou, sem mais nem menos, de que “existem búfalos”. O que deu grande espaço ao terreno, pois búfalos se movem devagar e longe.
E quem o olhasse — tão satisfeito o dominador — balançaria a cabeça em inveja pela sorte que aquele homem tivera em nascer quando as massas de gelo do globo já se haviam fundido; ele estava usufruindo de uma terra favorável. Veio-lhe, por exemplo, a vontade de comer — e ele anotou-a com aprovação. Tinha agora todos os sentidos que um rato tem, e mais um com o qual constatava o que acontecia: o pensamento. Era o modo menos pervertido de usá-lo. Deixava-se sanear pela coisa completa que havia nas plantas: com alívio, encostava seus pedaços crestados na frescura do que existe. Era danado de bom não mentir. Pois, sentado na pedra, ele não fazia nada mais que isso: não mentia. Por exemplo, Martim não estava triste. O que era estar enfim livre de todo um dever moral de ternura. Aquele homem tinha vindo de uma cidade onde o ar estava cheio dos sacrifícios de pessoas que, sendo infelizes, se aproximavam de um ideal. — Rebento a cara de quem mexer comigo! disse então alto exercitando sua alma e talvez procurando provocar em si uma cólera que de algum modo o sintonizaria com aquela calma energia ao seu redor. Depois do quê, levantou-se e urinou sereno olhando para o céu. As nuvens passavam altas. Ficou de pé, estúpido, modesto, aureolado. Sua unidade se dava como unidade. — A região é árida, pensou em seguida. O que lhe deu um gosto muito satisfatório. Olhou para o árido céu. O céu ali estava, alto. E ele embaixo. Perfeição maior não se pode imaginar. Quando dormia, dormia. Quando trabalhava, trabalhava. Vitória mandava nele, ele mandava no próprio corpo. E algo crescia com rumor informe.