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O Manifesto da Cidade

Pois no Rio tinha um lugar com uma lareira. E quando ela percebeu que, além do frio, chovia nas árvores, não pôde acreditar que tanto lhe fosse dado. O acordo do mundo com aquilo que ela nem sequer sabia que precisava como numa fome. Chovia, chovia. O fogo aceso pisca para ela e para o homem. Ele, o homem, se ocupa do que ela nem sequer lhe agradece: ele atiça o fogo na lareira, o que não lhe é senão dever de nascimento. E ela - que é sempre inquieta, fazedora de coisas e experimentadora de curiosidades - pois ela nem se lembra sequer de atiçar o fogo: não é seu papel, pois se tem o seu homem para isso. Não sendo donzela, que o homem então cumpra a sua missão. O mais que ela faz é às vezes instigá-lo: "aquela acha", diz-lhe, "aquela acha ainda não pegou". E ele, um instante antes que ela acabe a frase que o esclareceria, ele por ele mesmo já notara a acha. Não a comando seu, que é a mulher de um homem e que perderia seu estado se lhe desse ordem. A outra mão dele, a livre, está ao alcance dela. Ela sabe, e não a toma. Quer a mão dele, sabe que quer, e não a toma. Tem exatamente o que precisa: pode ter.
Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.

Comentários

Rhaisa Muniz disse…
Olá, muito legal este blog. Parabéns! Mas não achei a referência deste texto da Clarice, "O Manifesto da Cidade". Onde ele se encontra? Em que livro? Podes me informar? Agradecida. Grande abraço.
Rhaisa Muniz,

"O Manifesto da Cidade" está no livro "Onde estivestes de noite" (1974).

Att,
BCLispector
Rhaisa Muniz disse…
Muito agradecida.

Grande abraço,
Rhaisa Muniz

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