Pular para o conteúdo principal

Uma Ira

[...]
"Os pecados mortais clamavam em mim por mais vida, e clamavam com vergonha, os pecados mortais em mim pediam o direito de viver. Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo, e a fome com que nasci pelo leite, essa fome quis se estender pelo mundo, e o mundo não se queria comível. Ele se queria comível, sim, mas para isso exigia que eu fosse comê-lo com a humildade com que ele se dava. Mas a fome violenta é exigente e orgulhosa, e quando se vai com orgulho e exigência o mundo se transmuta em duro aos dentes e à alma. O mundo só se dá para os simples, e eu fui comê-lo com o meu poder e já com esta cólera que hoje me resume. E quando o pão se virou em pedra e ouro aos meus dentes, eu fingi por orgulho que não doía, eu pensava que fingir força era o caminho nobre de um homem e o caminho da própria força. Eu pensava que a força é o material de que o mundo é feito, e era com o mesmo material que eu iria a ele. E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver - e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? No entanto, no começo era apenas bom e não era pecado. Era um amor pelo mundo quando o céu e a terra são de madrugada, e os olhos ainda sabem ser tenros. Mas eis que minha natureza de repente me assassinava, e já não era uma doçura de amor pelo mundo, era uma avidez de luxúria pelo mundo. E o mundo de novo se retraiu, e a isso chamei de traição. A luxúria de estar vivo me espantava na minha insônia, sem eu entender que a noite do mundo e a noite do viver são tão doces que até se dorme, que até se dorme, meu Deus. E a água, na minha luxúria de viver, a água se derramava pelos dedos antes de chegar à boca. E eu amava o outro ser com a luxúria de quem quer salvar e ser salvo pela alegria. Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal, eu tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata, mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais. O que não consegui com eles, é isso que hoje me violenta e a que respondo com violência. Os meus pobres meios canhestros não me conseguiram nem terra nem céu, e a fúria me toma. Ah, mas se por um instante eu entender que a fúria é contra os meus erros e não contra os dos outros, então esta cólera se transformará nas minhas mãos em flores, em flores, em coisas leves, em amor. Eu ainda não sei controlar meu ódio mas já sei que meu ódio é um amor irrealizado, meu ódio é uma vida ainda nunca vivida. Pois vivi tudo - menos a vida. E é isso o que não perdôo em mim, e como não suporto não me perdoar, então não perdôo aos outros. A este ponto cheguei: como não consegui a vida, quero matá-la. A minha cólera - que é ela senão reivindicação? - a minha cólera, eu sei, eu tenho que saber neste minuto raro de escolha, a minha cólera é o reverso de meu amor; se eu quiser escolher finalmente me entregar sem orgulho à doçura do mundo, então chamarei minha ira de amor. Tanto temi jurar-me para sempre com essa primeira palavra que mal ouso pronunciar (amor), que fugi para a violência e para os olhos ensangüentados da paixão. Tudo, tudo por medo de me prostrar aos Teus pés e aos pés anônimos do "outro" que sempre Te representou. Que rei sou eu, que não se curva? Tenho que escolher entre a quebra do orgulho e o amor correnteza da ignorância e da doçura. A minha verdade antiga ainda me serve? Deus proibiu os sete pecados não por exigência de perfeição, mas apenas por piedade de nós, de mim que, como os outros, também tento não ser Dele e tento não ser dos outros, e eu sei que os outros são Ele. Neste instante tenho que escolher entre amar ou ter ódio. Sei que amar é mais lento, e a urgência me consome. Cobre minha fúria com o Teu amor, já que também eu sei que a minha ira é apenas não amar, minha ira é arcar com a intolerável responsabilidade de não ser uma erva. Sou uma erva que se sente onipotente e se assusta. Tira de mim a falsa onipotência destruidora, não deixa que a ferida que abriram em mim signifique ferida aberta por Ti, faz com que neste instante de escolha eu entenda que aquele que fere está no mesmo pecado que eu: no orgulho que leva à ira, e portanto ele fere assim como estou querendo ferir só porque não acredita, só porque não confia, só porque se sente um rei espoliado; ajuda aos que sofrem de ira porque eles estão apenas precisando se entregar a Ti. Mas como Tua grandeza me é incompreensível, faz com que Tu te apresentes a mim sob uma forma que eu entenda: sob a forma do pai, da mãe, do amigo, do irmão, da amante, do filho. Ira, transforma-te em mim em perdão, já que és o sofrimento de não amar."

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Ovo e a Galinha

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Qu...

O Primeiro Beijo

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme. - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples: - Sim, já beijei antes uma mulher. - Quem era ela? perguntou com dor. Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer. O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros. E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca. E nem sombra de ág...

O Nascimento do Prazer (trecho)

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer não é de se brincar com ele. Ele é nós.