Pular para o conteúdo principal

Otávio (trecho)

"De profundis". Joana esperou que a idéia se tor­nasse mais clara, que subisse das névoas aquela bola brilhante e leve que era o germe de um pensamento. "De profundis". Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para sempre em águas des­conhecidas. Ou senão, a momentos, afastar as nu­vens e crescer trêmulo, quase emergir completa­mente ... Depois o silêncio.
Fechou os olhos, vagarosamente foi descan­sando. Quando os abriu recebeu um pequeno choque. E durante longos e profundos segundos soube que aquele trecho de vida era uma mistura do que já vivera com o que ainda viveria, tudo fundido e eterno. Estranho, estranho. A luz alaranjada das 9 horas, aquela impressão de intervalo, um piano longínquo insistindo nas notas agudas, seu coração batendo apressado de encontro ao calor da manhã e, atrás de tudo, feroz, ameaçador, o silêncio latejando grosso e impalpável. Tudo desvaneceu-se. O piano interrompeu a insistência nas últimas notas e após um instante de repouso retomou docemente alguns sons do meio, em melodia nítida e fácil. E em breve ela não saberia dizer se a impressão da manhã fora verdadeira ou se apenas uma idéia. Deteve-se atenta para reconhecê-la... Um súbito cansaço confundiu-a um instante. Os nervos aban­donados, o rosto relaxado, sentiu uma leve onda de ternura por si mesma, de quase agradecimento, em­bora não soubesse por quê. Por um minuto pare­ceu-lhe que já vivera e que estava no fim. E logo em seguida, que tudo fora branco até agora, como um espaço vazio, e que ouvia longínqua e surdamente o fragor da vida se aproximando, densa, caudalosa e violenta, as ondas altas rasgando o céu, aproximan­do-se, aproximando-se... para submergi-la, para submergi-la, afogá-la asfixiando-a...
[...]

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Ovo e a Galinha

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Qu...

A Imitação da Rosa

Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso? Mas agora que ela estava de novo "bem", tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há quanto tempo não via Ar­mando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à ...

Mineirinho

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: "O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu...