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A Traição (trecho)

Um mês depois de ter vendido S. Geraldo, foi com a amigo de Mateus tratar dos papéis de casamento. O amigo disse:
— Espere nessa esquina enquanto entro no tabelião. A moça então respondeu:
— Pois não, doutor.
E na esquina ficou, segurando a bolsa. Estava tranqüila embora desconfiada.
Com ponderação olhava de um lado e de outro, calculando e medindo esta nova cidade que comprara.
Mas não era nenhuma ingênua sacrificada. Lucrécia Neves desejava ser rica, possuir coisas e subir de am­biente.
Como as ambiciosas moças de S. Geraldo, esperando que o dia de núpcias as libertasse do subúrbio — assim estava ela, séria, vestida de cor-de-rosa. Sapato e chapéu novo. De algum modo atraente. De algum modo enig­mática. Refazendo alguma prega amarrotada da saia, pipocando uma poeirinha na manga. De quando em quando dava um suspiro de educação.
Mas, talvez transviada pelo vento, talvez por estar de pé numa esquina — em breve entreabria os lábios que o ar secava, e sorria. Modesta no seu crime, sem culpa. Às vezes apertava a bolsa, suspirava enlevada.
E quando o advogado reapareceu tão ocupado, olhou-o de longe quase tola, solta nestas ruas que não eram suas, com um homem que falava e conduzia — um advogado! O primeiro elemento que realmente conhecia de Mateus.
E a primeira manifestação técnica desta nova cidade onde iria morar. A poeira rastejava acima das calçadas e a luz franzia o rosto.
[...]

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