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Mostrando postagens de agosto, 2008

Livro de Ângela

[...] Preciso tomar cuidado. Ângela já está se sentindo impulsionada por mim. É preciso que ela não perceba a minha existência, quase como que não percebemos" a existência de Deus. Ângela ao que parece quer escrever um livro estu­dando as coisas e objetos e sua aura. Mas duvido que ela agüente o compromisso. Suas observações em vez de serem construídas em livro saem descompromissadamente de seu modo de falar. Como ela gosta de escrever, eu quase não escrevo sobre ela, deixo ela mesma falar. [...] — Quanto a mim também me distancio de mim. Se a voz de Deus se manifesta no silêncio, eu também me calo silencioso. Adeus. Recuo meu olhar minha câmera e Ângela vai fi­cando pequena, pequena, menor — até que a perco de vista. E agora sou obrigado a me interromper porque. Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussur­ro das ventanias. Quanto a mim, estou. Sim. "Eu... eu.....

Luminescência (trecho)

[...]Depois mantiveram-se quietos, de mãos dadas. Por um instante ela retirou a mão, acendeu um cigarro, passou-o para ele, e acendeu outro para si mesma — e depois tornou a pegar na sua mão. Logo ele apagou o cigarro. Estava escuro, como ela quisera, e eles calados. Nunca me sei como agora, sentia Lóri. Era um saber sem piedade nem alegria nem acusação, era uma constatação intraduzível em sentimentos separados uns dos outros e por isso mesmo sem nomes. Era um saber tão vasto e tranqüilo que "eu não sou eu", sentia ela. E era também o mínimo, pois tratava-se, ao mesmo tempo, de um macrocosmo e de um microcosmo. Eu me sei assim como a larva se transmuta em crisálida: esta é minha vida entre vegetal e animal. Ela era tão completa como o Deus: só que Este tinha uma ignorância sábia e perfeita que O guiava e ao Universo. Saber-se a si mesma era sobrenatural. Mas o Deus era natural. Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da palavra e não podia explicar o que se...

Luminescência (trecho)

A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas logo descobriu que não queria falar com o Deus. Talvez nunca mais. Lembrou-se de que uma vez, de férias numa fazenda, deitara-se de bruços numa clareira do matagal, encostando o peito na terra, os membros na terra, só o rosto virado para o chão era protegido por um dos braços dobrados. A essa lembrança, que visualizou de novo, pensou que de agora em diante era só isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e não dizer uma palavra. Mas se isso era possível, só seria depois de morta. Enquanto estivesse viva teria que rezar, o que não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e representavam talvez Deus. Ulisses sobretudo. Embora, por deformação profissional, Ulisses ensinasse demais. Não tinha ar doutorai, parecia mais com um estudante que fosse mais velho, e que suas palavras não vinham de livros e sim de uma vida que ela adivinhava plena. O que não impedia que ele fosse sem querer um pouco pedante. Ir...

Luminescência (trecho)

[...] Nesta madrugada fresca foi ao terraço e refletindo um pouco chegou à assustadora certeza de que seus pensamentos eram tão sobrenaturais como uma história passada depois da morte. Ela simplesmente sentira, de súbito, que pensar não lhe era natural. Depois chegara à conclusão de que ela não tinha um dia-a-dia mas sim uma vida-a-vida. E aquela vida que era sua nas madrugadas era sobrenatural com suas inúmeras luas banhando-a de um prateado líquido tão terrível. Sobretudo aprendera agora a se aproximar das coisas sem ligá-las à sua função. Parecia agora poder ver como seriam as coisas e as pessoas antes que lhes tivéssemos dado o sentido de nossa esperança humana ou de nossa dor. Se não houvesse humanos na terra, seria assim: chovia, as coisas se ensopavam sozinhas e secavam e depois ardiam secas ao sol e se crestavam em poeira. Sem dar ao mundo o nosso sentido, como Lóri se assustava! Tinha medo da chuva quando a separava da cidade e dos guarda-chuvas abertos e dos campos se embeben...

Como Tornar tudo um Sonho Acordado?

[...]Mais importante que o texto é o fato. Os fatos me atrapalham. Por isso é que agora vou escrever sobre não fatos, isto é, sobre as coisas e o seu mirabolante mistério. É curiosa a sensação de escrever. Ao escrever não penso nem no leitor nem em mim: nessa hora sou — mas só de mim — sou as palavras propriamente ditas. [...]

A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia (trecho)

Estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maças que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira, viu o que a empregada deixara para jantar antes de ir embora, pois o almoço estivera péssimo, enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus que estava em férias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se tornar ext...

O Sonho acordado é que é a realidade

A última palavra será a quarta dimensão. Comprimento: ela falando Largura: atrás do pensamento Profundidade: eu falando dela, dos fatos e sentimentos e de seu atrás do pensamento. Eu tenho que ser legível quase no escuro. Tive um sonho nítido inexplicável: sonhei que brin­cava com o meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu. Por causa desse sonho é que inventei Ângela como meu reflexo? Tudo é real mas se move va-ga-ro-sa-men-te em câmara lenta. Ou pula de um tema a outro, desconexo. Se me desenraízo fico de raiz exposta ao vento e à chuva. Friável. E não como o granito azu­lado e pedra de Iansã sem fenda nem frincha. Ângela por enquanto tem uma tarja sobre o rosto que lhe es­conde a identidade. [...] Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento. A realidade não me surpreende. Mas não é ver­dade: de repente tenho uma tal fome da "coisa aco...