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A Origem da Primavera ou A Morte Necessária em Pleno Dia (trecho)

Estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maças que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira, viu o que a empregada deixara para jantar antes de ir embora, pois o almoço estivera péssimo, enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus que estava em férias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses que já lhe dissera que ela não tinha bom-gosto para se vestir, lembrou-se de que sendo sábado ele teria mais tempo porque não dava nesse dia as aulas de férias na Universidade, pensou no que ele estava se transformando para ela, no que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse "Lóri" mas que pudesse responder "meu nome é eu", pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido branco e preto serviria, então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo — e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra — veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra — sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil — afinal rebentados canos e veias, então sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver. Lembrou-se de escrever a Ulisses contando o que se passara, mas nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que contar.
[...]

Comentários

Johnny Dias disse…
Clarice em seu livro, ''Uma aprendizagem ou livro dos prazeres'', já no título parece retomar aquela idéia tão dura e exposta por Voltaire, ao sem mais, dar aos seus títulos a palavra ''ou''.
Deveras em Lispecotr não existe isso ''ou'' aquilo, e sim isto ''e '' aquilo, ao mesmo tempo, e buscando para ver se com a mesma intensidade, visto como expões, entre outros, o amor ''e''e o ódio, juntos, num mesmo carrocel, de vida ou de morte - quem sabe?
Finalizo dizendo simples, ao colocar que '' Um aprendizagem ou livros dos prazeres'' acontece aos poucos.
é isso!
abraços aos desconhecidos e, mesmo assim, próximos.
Johnny Dias
Anônimo disse…
Nem sonhei em voltar a blogar ainda mas... não resisti em comentar este livro da nossa Lispector... Um verdadeiro deleite para quem ama esta mulher.

Aqui, o universo dela expressa-se extremamente feminino, o mais que possível e impossível. Nada como mergulhar nestas entrelinhas obscuras, raras, puras e míticas de Clarice.

Amo este livro, mais do que aos outros... Esta obra marcou um momento muito especial da minha vida, uns dez aninhos atrás...

Tudo passa... mas Clarice permanece. Sempre.


Abraços...
Karina disse…
Lindíssimo blog!
Parabéns ao seu criador!!!


www.chamkli.blogspot.com


P.S.: aceita parceria?
Anônimo disse…
Boa tarde amigos de Lispector!

O espaço virtual de minha novela

relatonatural.blogspot.com

ganhou a linda benção de Clarice!

Mas que honra para mim receber o selo deste maravilhoso blog! A saber a musa como a verdadeira mãe e mestra à minha "retórica"!

Agradeço ao blog e à poeta responsável, pela consideração e carinho.

Saudações e abraços...


ANA DINIZ

Meu outro blog (Poesia):
doseuinteresse.blogspot.com
Alice Salles disse…
Ola!
Preciso prestar aqui minha homenagem a Clarice (me perdoe a falta de acentos) e meu sincero obrigada por fazer desse blog algo real!

Eu o linkei ai meu blog que eh todo sobre escrita.

Um abraco!

http://ilumine.thedharmabum.org
Anônimo disse…
Lindo!
Incrível, vou ler mais! rsrsrs

Beijos!

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