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Luminescência (trecho)

[...]Depois mantiveram-se quietos, de mãos dadas. Por um instante ela retirou a mão, acendeu um cigarro, passou-o para ele, e acendeu outro para si mesma — e depois tornou a pegar na sua mão. Logo ele apagou o cigarro. Estava escuro, como ela quisera, e eles calados. Nunca me sei como agora, sentia Lóri. Era um saber sem piedade nem alegria nem acusação, era uma constatação intraduzível em sentimentos separados uns dos outros e por isso mesmo sem nomes. Era um saber tão vasto e tranqüilo que "eu não sou eu", sentia ela. E era também o mínimo, pois tratava-se, ao mesmo tempo, de um macrocosmo e de um microcosmo. Eu me sei assim como a larva se transmuta em crisálida: esta é minha vida entre vegetal e animal. Ela era tão completa como o Deus: só que Este tinha uma ignorância sábia e perfeita que O guiava e ao Universo. Saber-se a si mesma era sobrenatural. Mas o Deus era natural. Lóri quis transmitir isso para Ulisses mas não tinha o dom da palavra e não podia explicar o que sentia ou o que pensava, além de que pensava quase sem palavras.
Ela adivinhou que ele quase adormecia, e então despregou devagar sua mão da dele. Ele sentiu logo a falta de contato e disse entre acordado e dormindo:
— É porque eu te amo.
Então ela, em voz baixa para não despertá-lo de todo, disse pela primeira vez na sua vida:
— É porque te amo.
Grande paz tomou-a por ter enfim dito. Sem medo de acordá-lo e sem medo da resposta, perguntou:
— Escute, você ainda vai me querer?
— Mais do que nunca, respondeu ele com voz calma e controlada. A verdade, Lóri, é que no fundo andei toda a minha vida em busca da embriaguez da santidade. Nunca havia pensado que o que eu iria atingir era a santidade do corpo.
Quanto a ela, lutara toda a sua vida contra a tendência ao devaneio, nunca deixando que ele a levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a corrente doce havia tirado parte de sua força vital. Agora, no silêncio em que ambos estavam, ela abriu suas portas, relaxou a alma e o corpo, e não soube quanto tempo se passara pois tinha-se entregue a um profundo e cego devaneio que o relógio da Glória não interrompia.
[...]

Comentários

Anônimo disse…
Aprendi com Clarice a encontrar a essência da mulher nas manifestações da natureza. A essência de um "Eu" forte, livre, arrebatador - tal como uma ventania, uma tempestade, ou mesmo o crepitar de uma chama acesa... E, do suave orvalho, lembro-me...

Clarice é uma Mestra - eu, uma aprendiz humilde, e resignada aos seus mistérios, de todos os "seus prazeres" consumados e inconsumados...

Ela está linda nesta foto, jovem e viva, como "Lóri".


ANA DINIZ
relatonatural.blogspot.com
Anônimo disse…
Boa Noite! Realmente fiquei muito feliz por encontrar um espaço tão belo e vasto dedicado à Clarice... também possuo um blog relacionado a escrita e toda semana não tem como não publicar um trecho de sua obra... visitarei muitas e muitas vezes este espaço pode ter certeza... já está na minha lista de blogs Recomendados! Gostaria que visitasse o meu também quando puder... http://belasmensagens.zip.net/

Grande abraço e Parabéns pelo blog!
Rodrigo

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