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Deus

Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando da minha própria força. Sou forte mas também sou destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.

Comentários

Zzr disse…
Palavras de um doce desespero. As que definem um momento que passamos pelo menos uma vez na vida. E existem aqueles que tem a vida desse momento.

Abraço.
ardiiida_ disse…
Li no blog que para receber as atualizações, bastava deixar o e-mail aqui. E como este é o blog mais maravilhoso de todos, deixarei-o aqui com muita ansiedade de receber atualizações, que, sem dúvida alguma, serão MARAVILHOSAS! parabéns pelo blog!

> ardiiida@gmail.com
um beijo!
Júnior disse…
Simplesmente perfeito.
jonathan disse…
Isso é mesmo de Clarice? Está em qual livro ou entrevista dela?
Jonathan, só publicamos o que é de Clarice. "Deus" é de 1968, presente em "A Descoberta do Mundo" e também em "Água Viva".
Anônimo disse…
isso e uma cronica ?/

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