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Mostrando postagens de janeiro, 2009

O Lustre (trecho)

A represa gemia sem interrupção, vibrava no ar e trepidava dentro do seu corpo, deixando-a de algum modo trêmula e quente. Sentou-se sobre uma das pedras ainda sensível de sol. Por um instante, num leve turbilhão silencioso, toda a sua vida ela a passara sentando-se sobre pe­dras; outra realidade é que ela atravessara toda a sua vida olhando antes de dormir o escuro e remexendo-se à procura de um conforto enquanto alguma coisa fina e acordada espreitava: amanhã. Sim, quantas coisas ela via — suspirou devagar olhando em torno com tristeza. Pensara achar na cidade outras espécies... Continuava no entanto a sentar-se sobre pedras, a notar um olhar numa pessoa, a encontrar um cego, a só ouvir certas palavras... via o que enxergara pela primeira vez e que parecia ter completado a capacidade de seus olhos. Um longo bem-estar vazio tomou-a, ela cruzou os dedos com delicadeza e afetação, pôs-se a olhar. Mas o céu esvoaçava tão esgarçado, roçagante, tão sem superfície... O que sentia era sem pr...

O Lustre (trecho)

Parecia-lhe ter mergulhado na vileza com a Sociedade das Sombras. Olhava-se ao espelho, o rosto branco e delicado perdido em penum­bra, os olhos abertos, os lábios sem expressão. Ela se agradava, gostava daquele seu jeito, fino, tão sinuoso, dos cabelos sombreados, de seus om­bros pequenos e magrinhos. Como sou linda, disse. Quem me compra? quem me compra? — fazia um ligeiro muxoxo ao espelho — quem me compra: ágil, engraçada, tão engraçada como se fosse loura mas não sou loura: tenho lindos, frios, extraordinários cabelos castanhos. Mas eu quero que me comprem tanto que... que... que me mato! exclamou e espiando seu rosto espantado com a frase, orgulhosa de seu próprio ardor, riu uma gargalhada falsa, baixa e brilhante. Sim, sim, precisava de uma vida secre­ta para poder existir. De um instante para outro estava de novo séria, cansada — seu coração pulsava na sombra, lento e vermelho. Um novo elemento até agora estranho penetrara em seu corpo desde que existia a Sociedade das Sombras....

O Lustre (trecho)

Ela estacara. Um grande silêncio seguira-se. Olhara-o e descobrira na sua trêmula vitória a mesma perturbação. Ele lhe trouxera timidamente um grito. Fitaram-se um instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo e nascente. E tudo era tão perigoso e revolvido que ambos desviaram quase bruscamente os olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre eles nesse momento. Embora ela jamais se ocupasse verdadeiramente de Deus e raramente rezasse. Diante da idéia dele permanecia surpreendentemente calma e inocente, sem um pensamento sequer. Daniel afastava-se. Naque­le tempo ele começara a pensar e a dizer coisas difíceis com gosto e amor. Ela ouvia inquieta. Ele passeava de ida e de volta pelos corredores penumbrosos do casarão com os braços cruzados, abstraído. Virgínia perscruta­va-lhe inutilmente o rosto de boca cerrada, os olhos escuros indecisos, aquela quase feiúra que se agravava com a idade, o sofrimento e o orgu­lho.

Uma Revolta

Quando o amor é grande demais torna-se inútil: já não é mais aplicável, e nem a pessoa amada tem a capacidade de receber tanto. Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.

Sobre a Escrita...

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. ...

Fãs

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O Lustre (trecho)

Sentada à sombra de uma árvore, em breve era rodeada de instantes vazios porque há vários momentos nada sucedia e os segundos futuros nada trariam — pressentia ela. Aquietava-se — não conseguia disfarçar-se o largo bem-estar inexplicável que a aprofundava no próprio corpo pensa­tivo, o ente inclinado para uma sensação delicada e difícil — mas dissimu­lava-se por algum motivo procurando ver as pedras do chão, as sobrance­lhas franzidas, mentirosas, toda ela sonsa e estúpida. Alguma coisa curiosa e fria ocorria-lhe, alguma coisa um pouco sorrindo com desprezo mas atenta de ir até o fim, fazendo-a quase pensar num impulso irônico e fútil: se és como dizes uma criatura viva, move-te... e ela quase desejaria erguer-se e colher uma erva clara um pouco tenra. Dentro de seu rosto as noções sussurravam liquefazendo-se em decomposição — ela era uma menina descansando. Olhava, olhava. Fechava os olhos atentando a todos os pontos indevassáveis de seu estreito corpo, pensando-se toda sem pala­vras,...

O Lustre (trecho)

Mas às vezes era tão rápida a sua vida. Luzes caminham em direção, Virgínia espia o céu, as cores brilham sob o mar. Virgínia caminha sem direção, a claridade é o ar, Virgínia respira claridade, folhas tremem sem saber, Virgínia não pensa, as luzes caminham sem direção, Virgínia espia o céu... As vezes era tão rápida a sua vida. Sua pequena cabeça de menina tonteava, ela fitava o campo à sua frente, espiava Granja Quieta já perdida na distância e olhava sem procurar entender. Em Brejo Alto não havia mar, porém uma pessoa podia olhar rapidamente para a extensa campina, fechar logo os olhos, apertar o próprio coração e como um filho, como um filho nascendo, sentir o cheiro docemente podre do mar. E mesmo que nesse instante o dia fosse duro e novo, as plantas secas de poeira, nuvens vermelhas e quentes de verão, os girassóis ásperos sacudindo-se no final do grosso talo contra o espaço, mesmo que não houvesse a feliz umidade das terras próximas às águas... uma vez um pássaro desabrochou da...

O Lustre (trecho)

Mas ela passaria os dias como uma visita na própria casa, não daria ordens, de nada cuidaria. Seu vestido florido e gasto vestia-a molemente, deixava entrever os longos seios gordos e aborrecidos. Ela já fora viva, com pequenas resoluções a cada minuto — brilhava seu olho fatigado e colérico. Assim vivera, casara e fizera Esmeralda nascer. E depois sobre-viera uma perda lenta, ela não abrangia com o olhar sua própria vida, embora seu corpo ainda continuasse a viver separado dos outros corpos. Preguiçosa, cansada e vaga, Daniel nascera e depois Virgínia, formados na parte inferior de seu corpo, incontroláveis — um pouco magros, cabelu­dos, os olhos até bonitos. Apegava-se a Esmeralda como ao resto de sua última existência, daquele tempo em que respirava para a frente dizendo: vou ter uma filha, meu marido vai comprar um grupo estofado, hoje é segunda-feira... Do tempo de solteira guardaria com amor uma camisola fina pelo uso como se a época sem homem e sem filhos fosse gloriosa. Assim d...

Sobre Nós

O Blog Clarice Lispector surgiu na quarta-feira, 3 de outubro de 2007, com a proposta de levar a obra de Clarice ao máximo de pessoas possíveis. Nesse pouco tempo o blog foi citado numa reportagem do Jornal Folha Online e na Rádio CBN . O blog atingiu 300.000 visitas e o que faz com que ele exista é saber que de alguma forma, ele contribui com os fãs da Clarice. Obrigado!

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