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O Lustre (trecho)

— Eu acho que no fundo todos os homens e mulheres vivem dizen­do: não quero pensar nisso. E pensando que não pensaram, hem? que acha? — terminara rindo muito com sagacidade, apertando os olhos. Ela também ria bastante balançando a cabeça várias vezes em assentimento, engolindo o café cheia de pasmo pela sua perspicácia. E não era verdade? ninguém podia suportar muito o que sentia. E agora a Bíblia...
— Pois sim, pode-se ler, dissera friamente. Ele olhou-a e compreen­deram-se com cuidado, evitando qualquer clareza.
— Mas beba o seu café antes que esfrie! gritou ela alto com intensida­de. Ele fitou-a hesitando um momento com esperança e de repente ale­grou-se, esfregou as mãos rápido:
— É verdade, é verdade!
Na noite seguinte bateu à porta, ela atendeu, viu-o com a pequena Bíblia na mão; de raiva e pudor ela recolheu-se, o corpo rígido, o rosto indiferente. Ele não a olhava. Entrou até o meio da sala, parou indeciso; ela permanecia em pé junto da porta como esperando que ele fosse embo­ra. Fazendo um esforço sobre si mesma disse depois de alguns instantes:
— Quer o café antes ou depois? Ele respondeu apressado:
— A senhora é quem manda...
Ela fez café, tomaram falando de algumas coisas sem importância entre longos momentos de silêncio cheio de suspeita e prudência. Afinal terminaram, ele disse com simplicidade:
— Eu leio ou a senhora?
— O senhor.
— Que pedaço?
— Qualquer serve.
— Não tem preferência?
— Eu conheço pouco.
— Está bem.

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