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A Maçã no Escuro (trecho)

Primeira parte: Como se faz um homem
Dois

Aquele homem andou léguas deixando o casarão cada vez mais para trás. Procurou andar em linha reta e às vezes se imo¬bilizava um segundo agarrando com cautela o ar. Como andava nas trevas não poderia sequer adivinhar em que direção deixara o hotel. O que o guiava no escuro era apenas a própria inten¬ção de andar em linha reta. O homem bem poderia ser um negro, tão pouco lhe servia a claridade da própria pele, e ele só sabia quem era pela sensação em si próprio dos movimentos que ele próprio fazia.
Com a mansidão de um escravo, ele fugia. Certa doçura o tomara, só que ele vigiava a própria submissão e de algum modo a dirigia. Nenhum pensamento perturbava sua marcha constante e já insensível, senão de vez em quando a idéia mal aclarada de que talvez estivesse andando em círculos, com a desconcertante possibilidade de se achar de novo diante das paredes do hotel.
Sempre, além do chão que os passos alcançavam, era a escuridão. Já caminhara horas, o que pôde calcular pelos pés grossos de cansaço. Só descobriria aonde se delineava o horizon¬te quando o dia raiasse e dissolvesse as brumas. Como a escuri¬dão ainda se mantinha tão colada aos olhos inutilmente abertos, terminou por concluir que escapara do hotel não de madrugada, mas em plena noite. Tendo dentro de si o grande espaço vazio de um cego, ele avançava.
Já que não precisava de olhos, experimentou andar de olhos fechados, pois numa precaução generalizada ele economi¬zava o que podia. De olhos cerrados pareceu-lhe que rodava em torno de si próprio numa tontura não de todo desagradável.
À medida que caminhava o homem sentia nas narinas aquela aguda falta de cheiro que é peculiar a um ar muito puro e que se mantém distinta de qualquer outra fragrância que tam¬bém se possa sentir — e isso o guiava como se seu único des¬tino fosse encontrar-se com o mais fino do fundo do ar. Mas seus pés tinham a milenar desconfiança da possibilidade de pisar em alguma coisa que se mova — os pés apalpavam a moleza suspeita daquilo que aproveita a escuridão para existir. Pelos pés ele entrou em contato com esse modo de ceder e poder ser moldado que é por onde se entra no pior da noite: na sua per¬missão. Não sabia onde pisava, se bem que através dos sapatos que se haviam tornado um meio de comunicação, ele sentisse a dubiedade da terra.
O homem nada poderia fazer senão esperar que a primeira penumbra lhe revelasse um caminho. Enquanto isso poderia dormir no chão que, distanciado pelas trevas, lhe pareceu inalcançável. Já não mais atiçado pelo perigo, desaparecera a saga¬cidade que lhe seria agora apenas um entrave. E de novo o embrutecimento suave o dominava. O chão era tão longe que, abandonando o corpo, este por um instante experimentou a queda no vácuo. Mal porém tocara numa terra que aos pés se esquivara, e esta instantaneamente se desencantou em algo re¬sistente, cujas duras rugas estáveis pareciam as do céu da boca de um cavalo. O homem estirou as pernas e encostou a cabeça. Agora que se imobilizara, o ar afiara-se e doía extremamente limpo. O homem não estava com sono mas no escuro não sa¬beria o que fazer da grande vigília. Além do mais não tinha assunto.
A essa altura já se havia habituado à música estranha que de noite se ouve e que é feita da possibilidade de alguma coisa piar e da fricção delicada do silêncio contra o silêncio. Era um lamento sem tristeza. O homem estava no coração do Brasil. E o silêncio fruía a si mesmo. Mas se a brandura era o modo como se ouvia a noite, para a noite a brandura era a sua pró¬pria espada, e na brandura a noite toda estava contida. O homem não se deixou enfeitiçar pela delícia que sentiu na sua¬vidade; adivinhava que léguas além a escuridão sabia que ele estava ali. Manteve-se pois em espreita, tendo sob um perfeito controle os meios de comunicação da noite.

Comentários

Nathacha disse…
Seguindo o blog :)

Se puder retribuir, ficarei grata!

Lembre-se que o seu comentário é fundamental.

Bjos

Nathacha
Boa noiite..amo as frases, pensamentos, citações e obras dessa escritora maravilhosa que foi Clarice Lispector, por isso faço questão de seguir esse blog...ameii....

Se vc me seguir tbm ficarei grata...

Sucesso!!!!
Nina Pilar disse…
adorei teu blog, e vou segui-lo.

beijinhos...

Amigos um belo dia do amigo pra vcs... na musica do milton nascimento e fernando brant a belíssima _Canção da América_, nada pode representar melhor um amigo e a sua importância...

Canção da América

Amigo é coisa pra se guardar
Debaixo de sete chaves,
Dentro do coração,
assim falava a canção que na América ouvi,
mas quem cantava chorou ao ver o seu amigo partir,
mas quem ficou, no pensamento voou,
com seu canto que o outro lembrou
E quem voou no pensamento ficou,
com a lembrança que o outro cantou.
Amigo é coisa para se guardar
No lado esquerdo do peito,
mesmo que o tempo e a distância, digam não,
mesmo esquecendo a canção.
O que importa é ouvir a voz que vem do coração.
Pois, seja o que vier,
venha o que vier
Qualquer dia amigo eu volto a te encontrar
Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar.

depois disso é esperar que nossos corações emocionem-se com nossas amizades como emocionamo-nos qdo ouvimos esta declaração de amor, tão maravilhosamente interpretada na voz do meu querido milton nascimento.

e esperar que cada um de nós escute o que fala o nosso coração...ate pq tudo que eu queria dizer eles já falaram, faço minha a voz deste gigante da nossa musica.

beijinhos queridos um belo dia do amigo todos...
Penélope disse…
Pois vou lhe contar, há muito que procurava um espaço assim, da Clarice, mas inda fico receosa, pois gostaria de saber mais, sobre a administração das páginas.
Gostou muito desta senhora escritora e só publico os excertos dela que tenho nas obras aqui em casa.
É muito complicado essa coisa de copia e cola.
Parabéns ao espaço.
Gostaria de saber, como já disse acima, um pouco mais sobre a construção das páginas e algo que me fizesse poder confiar na qualidade e veracidade do conteúdo.
Abraços
Poetisa (Helena) disse…
Oi!
Só passando para me desculpar pela escassez de postagens em Agosto no meu blog, o Escrevo para Viver.
É que a faculdade e o trabalho têm tomado todo o meu tempo e ficou complicado postar.
Mas agora estou de volta e vou me esforçar para manter atualizado.
Te convido a dar uma passadinha por lá e ler a primeira postagem deste mês (Na cadeira do juiz): http://escrevoparaviver.blogspot.com/2011/09/na-cadeira-do-juiz.html
Caso puder, deixe seu comentário ^^
Abraços virtuais,
Helena.
Penélope disse…
Venhpo para ficar porque amo Clarice e se gosta de poesia e outras coisinhas passa pelo meu INFINITO.
Abraços

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