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Entrevista com a atriz Rita Elmôr, que interpreta Clarice em espetáculo teatral


Claure comunicação: Como começou a história com a representação da Clarice Lispector?

Rita Elmôr: Começou quando eu tinha 23 anos e ganhei de presente dois livros de Clarice, "Perto do Coração Selvagem” e "A Descoberta do Mundo". Quando comecei a ler, me senti imediatamente íntima dela. Parecia que eu estava sendo apresentada a uma amiga que se tornaria uma amiga-irmã. Sabe aquela sensação boa de encontrar alguém que enxerga as coisas de um jeito parecido com o seu? Agora imagine essa sensação quando você se sente péssima justamente por achar que você enxerga as coisas de um jeito bem esquisito. Encontrar uma igual foi um oásis. Desde criança tenho um sentimento de inadequação, que persistiu na fase adulta. Por causa do meu jeito desencaixado, eu tentava ser do jeito dos outros, mas sempre dava errado, era patético e eu me sentia ainda pior. Entrar em contato com a obra da Clarice me ajudou muito. Continuei a ser desencaixada, mas uma desencaixada que se aceita, afinal de contas, a Clarice soube usar o desencaixe dela como ninguém. Vi que era possível! Pode reparar, todos os desencaixados amam Clarice. Nós formamos uma irmandade.

Claure comunicação: Por que decidiu voltar a interpretar a escritora?

Rita Elmôr: A Clarice foi a primeira personagem que interpretei profissionalmente. Me formei na faculdade de teatro e montei a peça "Que Mistérios Tem Clarice"com o dinheiro que ganhei do seguro após a perda total do meu carro numa enchente no Rio de Janeiro. Nesse meio tempo, 17 anos depois, se eu misturar teatro, televisão e cinema, posso dizer que interpretei quase trinta personagens. Voltar à Clarice depois de tudo isso está sendo muito interessante. Costumo fazer personagens tão distintos e com caracterização física tão forte que as pessoas sentem dificuldade em me associar a trabalhos diferentes. Mas dessa vez, algo novo e curioso aconteceu. Quando comecei a trabalhar na adaptação, ler e selecionar os textos, adequar a linguagem, escrever os textos de ligação e por fim encontrar o eixo da peça, ficou claro para mim e para o diretor, Rubens Camelo, que dessa vez não haveria a necessidade de nenhuma caracterização, que dessa vez eu estaria no palco como Rita. O curioso é que o texto da Clarice ficou mais vivo do que nunca. Acho que só com alguma quilometragem e um pouco de maturidade artística se torna possível estar no palco sem a proteção de um personagem. Pelo menos, no meu caso, está sendo assim. Talvez por isso eu esteja vendo esse trabalho como um recomeço na carreira. 

Claure comunicação: Fale sobre as imagens e a repercussão relativas à semelhança entre as duas.

Rita Elmôr: Já faz muito tempo que vejo as fotos da minha primeira montagem, fotos em que estou caracterizada como Clarice, serem confundidas com as fotos da própria Clarice. No início levei um susto. A primeira vez que isso aconteceu foi quando saiu uma foto enorme na capa do caderno de cultura do extinto Jornal do Brasil. De lá pra cá já apareci em capas de revistas de literatura, em jornais da Holanda, Nova York, Espanha, Berlim. A Clarice também ganhou um novo rosto. O meu. No início achei engraçado, não tinha me dado conta do poder de propagação das redes sociais, mas depois, quando as minha fotos viralizaram me senti roubada. É uma sensação muito estranha quando o seu rosto deixar de ser seu. O pior era quando aparecia a minha foto, um texto de Cecilia Meirelis e a assinatura da Clarice Lispector com 30.000 curtidas. Eu não sabia se ria ou chorava. Depois me acostumei. Aonde tinha Clarice lá estava a minha cara. Quando resolvi montar a nova peça achei que seria interessante usar essa história como ponto de partida. A peça é uma metáfora do que a vida fez com a nossa imagem, nós duas viramos a mesma pessoa. Agora isso vai acontecer no palco.


Claure comunicação: Quem fez a redação do texto atual?

Rita Elmôr: "Clarice e Eu. O Mundo não é chato" é uma peça com textos de Clarice Lispector adaptados por mim. Há textos meus, que falam da minha primeira montagem. Além desses, há breves textos de ligação, que fazem o espectador se perguntar: Quem está falando agora? É a Rita ou a Clarice? Mesmo assim, posso afirmar que a peça é basicamente uma adaptação de textos de Clarice para o teatro.

Claure comunicação: Qual a essência dele?

Rita Elmôr: A Clarice tem uma obra muito grande. É possível fazer inúmeros recortes. A primeira decisão que tomei para a adaptação foi sobre o que eu não queria que entrasse no texto. Eu não queria que fosse uma peça auto biográfica, não queria falar sobre as suas angústias mais pungentes e não queria falar sobre o seu doloroso processo de criação. Senti vontade de fazer uma peça que levasse luz às suas reflexões criadas a partir de encontros transformadores entre pessoas. O humor foi determinante na seleção dos textos. A meu ver, esse recorte facilita a relação do público com a obra de Clarice e torna possível brincar com a fusão entre atriz e autora. O desafio dessa adaptação foi o de criar uma comunicação simples, direta, sem empobrecer o texto, mas unicamente com o objetivo de tornar o espetáculo atraente tanto para os que conhecem Clarice, quanto para aqueles que nunca leram um livro inteiro na vida. É uma peça democrática. Não é Clarice para poucos. O mais surpreendente é que encontrei um material enorme que atendeu o meu desejo. Podem até não gostar da peça, mas ninguém vai sair do teatro dizendo que Clarice é uma escritora difícil. Isso eu posso afirmar.

Entrevista realizada por: Claure comunicação.

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