...Um Dia... (trecho)
domingo, abril 27, 2008Um dia o amigo do pai veio de longe e abraçou-se com ele. Na hora do jantar, Joana viu estupefata e contrita uma galinha nua e amarela sobre a mesa. O pai e o homem bebiam vinho e o homem dizia de quando em quando:
— Nem posso acreditar que tu tenhas arranjado uma filha...
O pai voltava-se rindo para Joana e dizia:
— Comprei na esquina...
O pai estava alegre e também ficava sério, amassando bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de vinho. O homem virava-se para Joana e dizia:
— Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai respondia:
— Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem era Alfredo.
— Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais em idade de brincar com o que o porco faz...
Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão.
— Qual a sensação de ter uma guria?, o homem mastigava.
O pai enxugava a boca com o guardanapo, inclinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo:
— Às vezes a de ter um ovo quente na mão. Às vezes, nenhuma: perda total de memória... Uma vez ou outra a de ter uma guria minha, minha mesmo.
— Guria, guria, muria, leria, seria..., cantava o homem voltado para Joana. Que é que tu vais ser quando cresceres e fores moça e tudo?
— Quanto ao tudo ela não tem a menor idéia meu caro, declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus projetos. Me disse que quando crescer vai ser herói...
O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segurou o queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia mastigar:
— Não vai chorar pelo segredo revelado, não é, guria?
Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham acontecido antes dela nascer. Às vezes mesmo não eram sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que estivesse chovendo porque seria muito mais fácil dormir sem medo do escuro. Os dois homens buscavam os chapéus para sair; então, ela se levantou e puxou o paletó do pai:
— Fica mais...
Os dois homens se entreolharam e houve um instante em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas quando o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir chuva, sem ouvir gente, pensando no resto da casa negra, vazia e calada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acordasse, iria espiar o quintal do vizinho, ver as galinhas porque ela hoje comera galinha assada.
[...]
— Nem posso acreditar que tu tenhas arranjado uma filha...
O pai voltava-se rindo para Joana e dizia:
— Comprei na esquina...
O pai estava alegre e também ficava sério, amassando bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de vinho. O homem virava-se para Joana e dizia:
— Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai respondia:
— Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem era Alfredo.
— Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais em idade de brincar com o que o porco faz...
Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão.
— Qual a sensação de ter uma guria?, o homem mastigava.
O pai enxugava a boca com o guardanapo, inclinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo:
— Às vezes a de ter um ovo quente na mão. Às vezes, nenhuma: perda total de memória... Uma vez ou outra a de ter uma guria minha, minha mesmo.
— Guria, guria, muria, leria, seria..., cantava o homem voltado para Joana. Que é que tu vais ser quando cresceres e fores moça e tudo?
— Quanto ao tudo ela não tem a menor idéia meu caro, declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus projetos. Me disse que quando crescer vai ser herói...
O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segurou o queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia mastigar:
— Não vai chorar pelo segredo revelado, não é, guria?
Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham acontecido antes dela nascer. Às vezes mesmo não eram sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que estivesse chovendo porque seria muito mais fácil dormir sem medo do escuro. Os dois homens buscavam os chapéus para sair; então, ela se levantou e puxou o paletó do pai:
— Fica mais...
Os dois homens se entreolharam e houve um instante em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas quando o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir chuva, sem ouvir gente, pensando no resto da casa negra, vazia e calada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acordasse, iria espiar o quintal do vizinho, ver as galinhas porque ela hoje comera galinha assada.
[...]
2 Clariceanos