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Alegrias de Joana (trecho)

A LIBERDADE QUE Às VEZES sentia não vinha de re¬flexões nítidas, mas de um estado como feito de per¬cepções por demais orgânicas para serem formula¬das em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.
O estado para onde deslizava quando murmu¬rava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteú¬do e uma forma, mas sem dimensões também. A im¬pressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facil¬mente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. So¬bretudo dava idéia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.
Definia eternidade e as explicações nasciam fa¬tais como as pancadas do coração. Delas não muda¬ria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em idéia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se po¬dia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente gran¬de que se desgastava, mas eternidade era a sucessão.
Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explicava a forma — era tão alto e puro gritar: o movimento explica a forma! — e na su¬cessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no co¬meço do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percep¬ções — por meio delas Joana fazia existir alguma coisa — ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma.
[...]

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