Água Viva (Parte Final)

domingo, maio 18, 2008

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma em um dom. E se sente que é um dom porque se está se experimentando, em fonte direta, a dádiva de repente indubitável de existir milagrosamente e materialmente.
Tudo ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação matemática das coisas e da lembrança de pessoas. Passa-se a sentir que tudo que existe respira e exala um finíssimo esplendor de energia. A verdade do mundo, porém, é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deve ser o estado de graça dos santos. Este estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas a graça de uma pessoa comum que a torna de súbito real porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse sentido são indizíveis e incomunicáveis. E impensáveis. É por isso que na graça eu me mantive sentada, quieta, silenciosa. E como em uma anunciação. Não sendo porém precedida por anjos. Mas é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois lentamente saí. Não como se estivesse estado em transe - não há nenhum transe - sai-se devagar, com um suspiro de quem teve tudo como o tudo que é. Também já é um suspiro de saudade. pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Essa felicidade eu quis tornar eterna por intermédio da objetivação da palavra. fui logo depois procurar no dicionário a palavra beatitude que detesto como palavra e vi que quer dizer gozo da alma. Fala em felicidade tranqüila - eu chamaria porém de transporte ou de levitação. Também não gosto da continuação no dicionário que dia: "de quem se absorve em contemplação mística". Não é verdade: eu não estava de modo algum em meditação, não houve em mim nenhuma religiosidade. Tinha acabado de tomar café e estava simplesmente vivendo ali sentada com um cigarro queimando-se no cinzeiro.
[...]
E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero - eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. e você é você. É vasto, vai durar.
O que te escrevo é um "isto". Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.
O que te escrevo continua e estou enfeitiçada.

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