O Passeio de Joana (trecho)
terça-feira, maio 06, 2008— Eu me distraio muito, disse Joana a Otávio.
Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?
A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim. Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam sem que os homens os acompanhassem com um olhar sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada. Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe e era grande, em primeiro lugar; em segundo, que era pequena e estava perto. Mas de qualquer modo, uma montanha estúpida, castanha e dura. Como odiava a natureza às vezes. Sem saber por que, pareceu-lhe que a última reflexão, misturada à montanha, concluía alguma coisa, batendo com a mão aberta sobre a mesa: pronto! pesadamente. Aquilo cinzento e verde estendido dentro de Joana como um corpo preguiçoso, magro e áspero, bem dentro dela, inteiramente seco, como um sorriso sem saliva, como olhos sem sono e enervados, aquilo confirmava-se diante da montanha parada. O que não conseguiria pegar com a mão estava agora glorioso e alto e livre e era inútil tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia seguramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus. Isso, sim, isso: se existisse Deus, é que ele teria desertado daquele mundo subitamente, excessivamente limpo, como uma casa ao sábado, quieta, sem poeira, cheirando a sabão. Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a perdida como num mosteiro, desolada, vagando pelos corredores? E muitas coisas que observava ainda. Assim, se suportava o gelo sobre o fígado, era atravessada por sensações longínquas e agudas, por idéias luminosas e rápidas, e se então tivesse que falar diria: sublime, com as mãos estendidas para frente, talvez os olhos cerrados.
[...]
Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?
A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim. Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam sem que os homens os acompanhassem com um olhar sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada. Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe e era grande, em primeiro lugar; em segundo, que era pequena e estava perto. Mas de qualquer modo, uma montanha estúpida, castanha e dura. Como odiava a natureza às vezes. Sem saber por que, pareceu-lhe que a última reflexão, misturada à montanha, concluía alguma coisa, batendo com a mão aberta sobre a mesa: pronto! pesadamente. Aquilo cinzento e verde estendido dentro de Joana como um corpo preguiçoso, magro e áspero, bem dentro dela, inteiramente seco, como um sorriso sem saliva, como olhos sem sono e enervados, aquilo confirmava-se diante da montanha parada. O que não conseguiria pegar com a mão estava agora glorioso e alto e livre e era inútil tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia seguramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus. Isso, sim, isso: se existisse Deus, é que ele teria desertado daquele mundo subitamente, excessivamente limpo, como uma casa ao sábado, quieta, sem poeira, cheirando a sabão. Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a perdida como num mosteiro, desolada, vagando pelos corredores? E muitas coisas que observava ainda. Assim, se suportava o gelo sobre o fígado, era atravessada por sensações longínquas e agudas, por idéias luminosas e rápidas, e se então tivesse que falar diria: sublime, com as mãos estendidas para frente, talvez os olhos cerrados.
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2 Clariceanos