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A Paixão Segundo G.H. (trecho)

Eu tinha agora uma sensação de irremediável. E já sabia que embora absurdamente, eu só teria ainda chance de sair dali se encarasse frontal e absurdamente que alguma coisa estava sendo irremediável. Eu sabia que tinha de admitir o perigo em que eu estava, mesmo consciente de que era loucura acreditar num perigo inteiramente inexistente. Mas eu tinha de acreditar em mim - a vida toda eu estivera como todo o mundo em perigo - mas agora, para poder sair, eu tinha a responsabilidade alucinada de ter de saber disso.
Na minha clausura entre a porta do armário e o pé da cama, eu ainda não tentara de novo mover os pés para sair, mas recuara o dorso para trás como, se mesmo na sua extrema lentidão, a barata pudesse dar um bote - eu já havia visto as baratas que de súbito voam, a fauna alada.
Fiquei imóvel, calculando desordenadamente. Estava atenta, eu estava toda atenta. Em mim um sentimento de grande espera havia crescido, e uma resignação surpreendida: é que nesta espera atenta eu reconhecia todas as minhas esperas anteriores, eu reconhecia a atenção de que também antes vivera, a atenção que nunca me abandona e que em última análise talvez seja a coisa mais colada à minha vida - quem sabe aquela atenção era a minha própria vida. Também a barata: qual é o único sentimento de uma barata? a atenção de viver, inextricável de seu corpo. Em mim, tudo o que eu superpusera ao inextricável de mim, provavelmente jamais chegara a abafar a atenção que, mais que atenção à vida, era o próprio processo de vida em mim.
Foi então que a barata começou a emergir do fundo.Antes o tremor anunciante das antenas.
Depois, atrás dos fios secos, o corpo relutante foi aparecendo. Até chegar quase toda à tona da abertura do armário.
[...]

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