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... A Tia... (trecho)

A VIAGEM ERA LONGA e das moitas longínquas vinha um cheiro frio de mato molhado.
Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de lavar o rosto. A empregada ao seu lado distraía-se soletrando os anúncios do bonde. Joana encostara a têmpora direita no banco e deixava-se atordoar pelo doce ruído das rodas, transmitido sono-lentamente pela madeira. O chão corria sob seus olhos baixos, célere, cinzento, raiado de listras ve¬lozes e fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acabaria com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o bonde corria mais e que se tor¬nava mais forte o vento salgado e fresco do nascer do dia.
Tomara o café com um bolo esquisito, escuro — gosto de vinho e de barata — que lhe tinham fei¬to comer com tanta ternura e piedade que ela se en¬vergonhara de recusar. Agora pesava-lhe no estôma¬go e dava-lhe uma tristeza de corpo que se juntava àquela outra tristeza — uma coisa imóvel atrás da cortina — com que dormira e acordara.
— Essa areia afundando mata um cristão, res¬mungou a empregada.
Atravessou a extensão de areia que levava à casa da tia, prenunciando a praia. Debaixo dos grãos nasciam ervas magras e escuras que se retorciam asperamente à superfície da brancura fofa. A ven¬tania vinha do mar invisível, trazia sal, areia, o ba¬rulho cansado das águas, embaraçava as saias entre as pernas, lambendo furiosamente a pele da menina e da mulher.
[...]

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