A Caçada (trecho)

segunda-feira, junho 16, 2008

Nessa mesma tarde ouviu-se a cadência de patas nas pe­dras da rua do Mercado. A carroça e o cavalo avançavam a passo. De súbito a cabeça do cavalo cresceu, a um mo­vimento espavorido do pescoço ergueu-se: gengivas roxas apareceram e os freios cortaram-lhe a boca — num rincho de todo o corpo e na estridência das rodas: o cavalo e a carroça. Depois o vento continuou a soprar em si­lêncio.
O que sucedia na rua não atingia mas chamava como para assistir a um incêndio.
No quarto uma jovem estava de pé e, se procurava manter a sensatez, já se achava entregue ao próprio ru­mor sem linguagem. Também no aposento os objetos, de forma constante, tornaram-se insuportáveis além de al­guns segundos — a moça estava sempre de costas para alguma coisa; o quarto já se precipitara, pesado de orna­mentos. Só ela ainda estava consciente demais para co­meçar o disfarce, o vento entre os sobrados apressava-a.
Enquanto se descalçava forçava mesmo a confusão do quarto e da rua, de onde tiraria a própria forma. Nada porém a empurrara ainda para a realidade do que estava sucedendo. No compartimento sombrio a claridade era o buraco da fechadura.
[...]

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