No Jardim (trecho)

quarta-feira, junho 25, 2008

Pouco depois, enquanto mudava de roupa, o rosto de Lucrécia estava transviado pelos primeiros espantos do sono. Mal-assombrada como se já tivesse adormecido, in­terrompeu-se com o vestido na mão — chamada, fraca: mais um instante e começaria a sonhar. No banheiro nem sabia mais o que viera buscar. De novo arrastou-se para o quarto e parou à porta.
Pela varanda soprava o vento da chuva. As coisas estavam exorcizadas, divididas, extremamente pálidas... a cortina voava quase levada e o quarto hesitava como se alguém acabasse de desaparecer pela janela. Havia um momento na imobilidade dos objetos que assombrava numa visão... Na sonolência, Lucrécia Neves se eriçou diante das coisas físicas. A luz estava apagada. O apo­sento porém se aclarava pela exalação mortiça de cada objeto e a própria cara da moça tornou-se tocante. Fitar as coisas imóveis por um momento a solevou num suspi­ro de sono, a própria imobilidade a transportou em desvairamento: bocejando cuidadosa, errante entre os obje­tos do espaço — os brinquedos da infância espalhados sobre os móveis. Um camelinho. A girafa. O elefante de tromba erguida. Ah, touro, touro! atravessando o ar en­tre os vegetais carnudos do sono.
[...]

2 Clariceanos