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A Paixão Segundo G.H. (trecho)

[...]
Mas ouve um instante: não estou falando do futuro, estou falando de uma atualidade permanente. E isto quer dizer que a esperança não existe porque ela não é mais um futuro adiado, é hoje. Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que isso: Ele é, e nunca pára de ser. Somos nós que não agüentamos esta luz sempre atual, e então a prometemos para depois, somente para não senti-la hoje mesmo e já. O presente é a face hoje do Deus. O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com os olhos abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de minha morte - é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e assim penso que não O verei realmente, assim como só tenho coragem de verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.
Sei que o que estou sentindo é grave e pode me destruir. Porque - porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus já é.
E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, só agüento a sua promessa! A notícia que estou recebendo de mim mesma me soa cataclísmica, e de novo perto do demoníaco. Mas é só por medo. É medo. Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.
[...]
Meu mundo hoje está cru, é um mundo de uma grande dificuldade vital. Pois, mais do que a um astro, eu hoje quero a raiz grossa e preta dos astros, quero a fonte que sempre parece suja, e é suja, e que é sempre incompreensível.
É com dor que dou adeus mesmo à beleza de uma criança - quero o adulto que é mais primitivo e feio e mais seco e mais difícil, e que se tornou uma criança-semente que não se quebra com os dentes.

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