Lídia (trecho)

quarta-feira, julho 16, 2008

A manhã seguinte era de novo como um primeiro dia, sentiu Joana.
Otávio saíra cedo e ela o abençoava por isso como se ele lhe tivesse concedido intencionalmente tempo para pensar, para observar-se. Ela não que­ria precipitar-se em nenhuma atitude, sentia que qualquer de seus movimentos poderia tornar-se pre­cioso e perigoso.
Foram instantes, horas rápidas apenas. Porque ela recebeu o bilhete de Lídia convidando-a a vi­sitá-la.
Sua leitura fizera Joana sorrir antes mesmo de provocar aquelas rápidas e pesadas batidas do cora­ção. E também a lâmina fria de aço encostando no interior morno do corpo. Como se sua tia morta ressurgisse e lhe falasse, Joana imaginou-lhe o susto, sentiu seus olhos abertos — ou seriam os seus pró­prios olhos a quem ela não permitia surpresas? —: Otávio voltou para Lídia, apesar de Joana? — diria a tia.
Joana alisou os cabelos vagamente, a lâmina fria encostada ao coração quente, sorriu de novo, oh só para ganhar tempo. Mas sim, por que não continuar com Lídia? — respondeu à tia morta. A lâmi­na agora, a esse pensamento claro, oprimiu-lhe rindo os pulmões, gelada. Por que recusar acontecimentos? Ter muito ao mesmo tempo, sentir de várias manei­ras, reconhecer a vida em diversas fontes... Quem poderia impedir a alguém viver largamente?
Mais tarde caiu num estado de estranha e leve excitação. Deslizou pela casa sem destino, chorou mesmo um pouco, sem grande sofrimento, só por chorar — convenceu-se — simplesmente, como quem acena com a mão, como quem olha. Estou sofrendo?
— indagava-se às vezes e de novo quem pensava enchia toda ela de surpresa, curiosidade e orgulho e não restava lugar para quem sofrer. Mas sua fina exaltação não lhe permitiu continuar num mesmo plano durante muito tempo. Passou logo a outro tom de comportamento, tocou um pouco de piano, esque­ceu a carta de Lídia. Quando dela se lembrava, vaga­mente, um pássaro que vem e volta, não sabia deci­dir-se, se ficar triste ou alegre, se calma ou agitada. Lembrava-se continuamente da noite anterior, a vi­draça erguida brilhava serenamente à lua, do peito nu de Otávio, da Joana que adormecera profunda­mente, quase pela primeira vez na vida, confiando-se a um homem que dormia ao seu lado. Na verdade não se distanciara da Joana cheia de ternura da vés­pera. Envergonhada, humilde e rejeitada, essa va­gara até voltar e Joana estava cada vez mais dura, mais concentrada e cada vez mais perto de si mesma — julgava. Até melhor. Só que o aço frio se reno­vava sempre, nunca esquentava. Sobretudo, no fundo de qualquer pensamento pairava um outro, perplexo, quase encantado, como no dia da morte do pai: aconteciam coisas sem que ela as inventasse...
[...]

0 Clariceanos