O Abrigo no Homem (trecho)

sexta-feira, julho 25, 2008

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Como terminar a história de Joana? Se pudesse co­lher e acrescentar o olhar que surpreendera em Lídia: ninguém te amará... Sim, terminar assim: apesar de ser das criaturas soltas e sozinhas no mun­do, ninguém jamais pensou em dar alguma coisa a Joana. Não amor, entregavam-lhe sempre outro sentimento qualquer. Viveu sua vida, ávida como uma virgem — isso para o túmulo. Fez-se muitas perguntas, mas nunca pôde se responder: parava para sentir. Como nasceu um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as coisas eram ri­cas . — Desejaria deter seu tempo na pergunta. Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas re­tas... harmônico e misterioso como um arpejo. Onde se guarda a música enquanto não soa? — in­dagava-se. E rendida respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu morrer.
O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto sobre as ondas, movendo-se. Bastava menear a cabeça para que as ondas a acompanhassem. Mas ela tivera coisa, ah isso tivera. Um marido, seios, um amante, uma casa, livros, cabelos cortados, uma tia, um professor. Titia, ouça-me, eu conheci Joa­na, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca em relação às coisas. Tudo lhe parecia às vezes preciso demais, impossível de ser tocado. E, às ve­zes, o que usavam como ar de respirar, era peso e morte para ela. Veja se compreende a minha he­roína, titia, escute. Ela é vaga e audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria notando-o como Lídia, outra mulher —uma jovem mulher cheia do próprio destino —, observou-o. No entanto o que há dentro de Joana é alguma coisa mais forte que o amor que se dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se recebe. Compre­ende, titia? Eu não a chamaria de herói como eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão. — Me ocorreu agora isso: quem sabe, talvez a crença na sobrevivência futura venha de se notar que a vida sempre nos deixa intocados. — Compreende, titia? — esqueça a interrupção da vida futura — compreende? Vejo teus olhos aber­tos, me olhando com medo, com desconfiança, mas querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha, agora morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por cima de minha aspereza. Po­bre!, a maior revolta que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquele frase quase diária que ainda ouço, misturada ao teu cheiro que não posso esquecer: "oh, não poder sair à rua na roupa em que se está!" Que mais te contar? Tenho os cabelos cortados, castanho, às vezes uso franja. Vou morrer um dia. Nasci também. Havia o quarto com os dois. Ele era bonito. O quarto rodava um pou­co. Tornava-se transparente e morno um véu um véu se aproximando vindo. Eles três formavam um ca­sal e a quem contar isso? Poderia adormecer por­que o homem nunca dormia e vigiaria como a chuva caindo. Otávio também era bonito, olhos. Esse era uma criança uma ameba flores brancura mornidão como o sono por enquanto é tempo por enquanto é vida mesmo que mais tarde... Tudo como a terra uma criança Lídia uma criança Otávio terra de profundis...

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