O Homem (trecho)

segunda-feira, julho 21, 2008

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do re­lógio . O fundo dos acontecimentos erguendo-se cala­do e morto, um pouco da eternidade.
Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho da vida ao seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo, vindo de longe, — um pássaro negro, um ponto crescendo do hori­zonte, aproximando-se da consciência como uma bola arremessada do fim para o princípio. E explo­dindo diante dos olhos perplexos em essência de si­lêncio. Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer de­pois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sem­pre o pequeno ponto vazio — deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar.
Joana sentiu-o enquanto atravessava o pequeno jardim de Lídia, ignorando aonde iria, sabendo ape­nas que deixava atrás de si tudo o que vivera. Quan­do fechou o portãozinho, afastou-se de Lídia, de Otávio, e, de novo sozinha em si mesma, cami­nhava .
Um começo de tempestade acalmara e o ar fresco circulava docemente. Subiu de novo o morro e seu coração ainda batia sem ritmo. Procurava a paz da­queles caminhos àquela hora, entre a tarde e a noite, uma cigarra invisível sussurrando o mesmo canto. Os velhos muros úmidos em ruína, invadidos de he­ras e trepadeiras sensíveis ao vento. Parou e sem os seus passos ouvia o silêncio mover-se. Só seu corpo perturbava aquela serenidade. Imaginava-a sem sua presença e adivinhava a frescura que deveriam ter aquelas coisas mortas misturadas às outras, frágil-mente vivas como no início da criação.
As altas casas fechadas, recolhidas como tor­res. Chegava-se a um dos casarões por uma longa rua sombria e quieta, o fim do mundo. Apenas junto dele enxergava-se um declive, o nascimento de ou­tra rua e compreendia-se que não era o fim. O casarão baixo e largo, os vidros quebrados, as vene­zianas cerradas, cobertas de poeira. Conhecia bem aquele jardim onde se misturavam fofos tufos de erva, rosas vermelhas, velhas latas enferrujadas. Sob os jasmineiros em flor encontraria os jornais des­botados, pedaços de madeira úmida de antigos en­xertos. Entre as árvores pesadas e envelhecidas os pardais e os pombos beliscando desde sempre o chão. Um passarinho pousava do vôo, passeava pe­los arredores até sumir-se numa das moitas. O casa­rão orgulhoso e doce em seus escombros. Morrer ali. Àquela casa só se podia chegar quando viesse o fim. Morrer naquela terra úmida tão boa para rece- ber um corpo morto. Mas não era morte o que ela queria, tinha medo também.
[...]

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