O Jantar

terça-feira, julho 22, 2008

Ele entrou tarde no restaurante. Certamente ocupara-se até agora em grandes negócios. Poderia ter uns sessenta anos, era alto, corpulento, de cabelos brancos, sobrancelhas espes­sas e mãos potentes. Num dedo o anel de sua força. Sen­tou-se amplo e sólido.
Perdi-o de vista e enquanto comia observei de novo a mulher magra de chapéu. Ela ria com a boca cheia e rebrilhava os olhos escuros.
No momento em que eu levava o garfo à boca, olhei-o. Ei-lo de olhos fechados mastigando pão com vigor e meca­nismo, os dois punhos cerrados sobre a mesa. Continuei comendo e olhando. O garçom dispunha os pratos sobre a toalha. Mas o velho mantinha os olhos fechados. A um gesto mais vivo do criado ele os abriu com tal brusquidão que este mesmo movimento se comunicou às grandes mãos e um garfo caiu. O garçom sussurrou palavras amáveis abaixando-se para apanhá-lo; ele não respondia. Porque agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com veemência, a ponta da língua aparecendo — apalpava o bife com as costas do garfo, quase o cheirava, mexendo a boca de antemão. E começava a cortá-lo com um movimento inútil de vigor de todo o corpo. Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e, como se tivesse que apanhá-lo em vôo, abocanhou-o num arrebatamento de cabeça. Olhei para o meu prato. Quando fitei-o de novo, ele estava em plena glória do jantar, mastigando de boca aberta, passando a língua pelos dentes, com o olhar fixo na luz do teto. Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente.
E exatamente como se não suportasse mais — o quê? — pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas. Parei em guarda. Seu corpo respirava com dificuldade, crescia. Tira afinal o guardana­po da vista e olha entorpecido de muito longe. Respira abrindo e fechando desmesuradamente as pálpebras, limpa os olhos com cuidado e mastiga devagar o resto de comida ainda na boca.
Daqui a um segundo, porém, está refeito e duro, apa­nha uma garfada de salada com o corpo todo e come incli­nado, o queixo ativo, o azeite umedecendo os lábios. Inter­rompe-se um instante, enxuga de novo os olhos, balança brevemente a cabeça — e nova garfada de alface com carne é apanhada no ar. Diz ao garçom que passa:
— Não é este o vinho que mandei trazer.
A voz que esperava dele: voz sem réplicas possíveis pela qual eu via que jamais se poderia fazer alguma coisa por ele. Senão obedecê-lo.
O garçom se afastou cortês com a garrafa na mão.
Mas eis que o velho se imobiliza de novo como se tives­se o peito contraído e barrado. Sua violenta potência sacode-se presa. Ele espera. Até que a fome parece assaltá-lo e ele recomeça a mastigar com apetite, de sobrancelhas fran­zidas. Eu é que já comia devagar, um pouco nauseado sem saber por quê, participando também não sabia de quê. De repente ei-lo a estremecer todo, levando o guardanapo aos olhos e apertando-os numa brutalidade que me enleva... Abandono com certa decisão o garfo no prato, eu próprio com um aperto insuportável na garganta, furioso, quebrado em submissão. Mas o velho demora pouco com o guarda­napo nos olhos. Desta vez, quando o tira sem pressa, as pupilas estão extremamente doces e cansadas, e antes dele enxugar-se — eu vi. Vi a lágrima.
Inclino-me sobre a carne, perdido. Quando finalmen­te consigo encará-lo do fundo de meu rosto pálido, vejo que também ele se inclinou com os cotovelos apoiados sobre a mesa, a cabeça entre as mãos. E exatamente ele não suportava mais. As sobrancelhas grossas estavam jun­tas. A comida devia ter parado pouco abaixo da garganta sob a dureza da emoção, pois quando ele pôde continuar fez um gesto terrível de esforço para engolir e passou o guar­danapo pela testa. Eu não podia mais, a carne no meu prato era crua, eu é que não podia mais. Porém ele — ele comia.
O garçom trouxe a garrafa dentro de uma vasilha de gelo. Eu anotava tudo, já sem discriminar: a garrafa era outra, o criado de casaca, a luz aureolava a cabeça robusta de Plutão que se movia agora com curiosidade, guloso e atento. Por um instante o garçom cobre minha visão do velho e vejo apenas as asas negras duma casaca: sobrevoando a mesa, vertia vinho vermelho na taça e aguardava de olhos quentes — porque lá estava seguramente um senhor de boas gorjetas, um desses velhos que ainda estão no centro do mundo e da força. O velho engrandecido tomou um gole com segurança, largou a taça e consultou com amargura o sabor na boca. Batia um lábio no outro, estalava a língua com desgosto como se o que era bom fosse intolerável. Eu esperava, o garçom esperava, ambos nos inclinávamos suspensos. Afinal, ele fez uma careta de aprovação. O cria­do curvou a cabeça luzente com sujeição ao agradecimento, saiu inclinado, e eu respirava com alívio.
Ele agora misturava à carne os goles de vinho na grande boca e os dentes postiços mastigavam pesados enquanto eu o espreitava em vão. Nada mais acontecia. O restaurante parecia irradiar-se com dupla força sob o tilintar dos vidros e talheres; na dura coroa brilhante da sala os murmúrios cresciam e se apaziguavam em vaga doce, a mulher do cha­péu grande sorria de olhos entrefechados, tão magra e bela, o garçom derramava com lentidão o vinho no copo. Mas eis que ele faz um gesto.
Com a mão pesada e cabeluda, onde na palma as linhas eram cravadas com tal fatalidade, faz um gesto de pensa­mento. Diz com a mímica o mais que pode, e eu, eu não compreendo. E como se não suportasse mais — larga o garfo no prato. Desta vez foste bem agarrado, velho. Fica respirando, acabado, ruidoso. Pega então no copo de vinho e bebe de olhos fechados, em rumorosa ressurreição. Meus olhos ardem e a claridade é alta, persistente. Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e peri­goso. A mulher magra cada vez mais bela estremece séria entre as luzes.
Ele terminou. Sua cara se esvazia de expressão. Fecha os olhos, distende os maxilares. Procuro aproveitar este mo­mento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é des­conhecida, majestosa, cruel e cega. O que eu quero olhar diretamente, pela força extraordinária do ancião, não existe neste instante. Ele não quer.
Vem a sobremesa, um creme derretido, e eu me surpreendo pela decadência da escolha. Ele come devagar, tira uma colherada e espia o líquido pastoso escorrer. Ingere tudo, porém, faz uma careta e, crescido, alimentado, afasta o prato. Então, já sem fome, o grande cavalo apóia a cabe­ça na mão. O primeiro sinal mais claro aparece. O velho comedor de crianças pensa nas suas profundezas. Com pali­dez vejo-o levar o guardanapo à boca. Imagino ouvir um soluço. Ambos permanecemos em silêncio no centro do salão. Talvez ele tivesse comido depressa demais. Porque, apesar de tudo, não perdeste a fome, hein!, instigava-o eu com ironia, cólera e exaustão. Mas ele se desmoronava a olhos vistos. Os traços agora caídos e dementes, ele balan­çava a cabeça de um lado para outro, de um lado para outro sem se conter mais, com a boca apertada, os olhos cerrados, embalando-se — o patriarca estava chorando por dentro. A ira me asfixiava. Vi-o botar os óculos e ficar mais velho muitos anos. Enquanto contava o troco, batia os dentes projetando o queixo para a frente, entregando-se um ins­tante à doçura da velhice. Eu mesmo, tão atento estivera a ele, que não o vira tirar o dinheiro para pagar, nem exami­nar a conta, e não notara a volta do garçom com o troco.
Afinal tirou os óculos, bateu os dentes, enxugou os olhos fazendo caretas inúteis e penosas. Passou a mão qua­drada pelos cabelos brancos, alisando-os com poder. Levan­tou-se segurando o bordo da mesa com as mãos vigorosas. E eis que, depois de liberto de um apoio, ele parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda capaz de apunhalar qualquer um de nós. Sem que eu possa fazer nada, põe o chapéu acariciando a gravata ao espelho. Atravessa o aspecto luminoso do salão, desaparece.
Mas eu sou um homem ainda.
Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.

5 Clariceanos