Luminescência (trecho)

sábado, agosto 23, 2008

A dor voltara quase fisicamente, e ela pensou em rezar. Mas logo descobriu que não queria falar com o Deus. Talvez nunca mais. Lembrou-se de que uma vez, de férias numa fazenda, deitara-se de bruços numa clareira do matagal, encostando o peito na terra, os membros na terra, só o rosto virado para o chão era protegido por um dos braços dobrados.
A essa lembrança, que visualizou de novo, pensou que de agora em diante era só isso o que ela queria do Deus: encostar o peito nele e não dizer uma palavra. Mas se isso era possível, só seria depois de morta. Enquanto estivesse viva teria que rezar, o que não queria mais, ou então falar com os humanos que respondiam e representavam talvez Deus. Ulisses sobretudo.
Embora, por deformação profissional, Ulisses ensinasse demais. Não tinha ar doutorai, parecia mais com um estudante que fosse mais velho, e que suas palavras não vinham de livros e sim de uma vida que ela adivinhava plena. O que não impedia que ele fosse sem querer um pouco pedante. Irritava-a como ele queria parecer... o quê? Superior? Ulisses, o sábio Ulisses, algum dia ia cair como uma estátua de seu pedestal. Lóri sabia que pensava tudo isso por raiva, de dor, com o rosto enterrado no travesseiro.
Não sabia mais de nada. E apesar de se sentir agora muda em relação ao Deus, percebia em si a vontade intensa quase pungente de se lamentar, de acusar, sobretudo de reivindicar. Parecia-lhe que já fora tão experimentada que agora lhe deveria chegar, dentro da lógica romântica dos humanos, a hora de receber a paz. Já nem ousava pensar em alegria, que ela não sabia propriamente como era, mas em paz. O que seria uma alegria? Ainda teria capacidade de reconhecê-la, se viesse? Ou já era tarde demais para que soubesse distingui-la. Pois ela adivinhava que a alegria viria talvez como um som simples quase aquém do nível de audição. Então ela, que nunca mais falara com o Deus cósmico, disse-Lhe em súbita cólera: eu nada Vos dou porque nada me destes.
[...]

1 Clariceanos