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Uma Tarde Plena

O sagüim é tão pequeno como um rato, e da mesma cor.
A mulher, depois de se sentar no ônibus e de lançar uma tranqüila vista de proprietária pelos bancos, engoliu um grito: ao seu lado, na mão de um homem gordo, estava aquilo que parecia um rato inquieto e que na verdade era um vivíssimo sagüim. Os primeiros momentos da mulher versus sagüim foram gastos em procurar sentir que não se tratava de um rato disfarçado.
Quando isso foi conseguido, começaram momentos deliciosos e intensos: a observação do bicho. O ônibus inteiro, aliás, não fazia outra coisa.
Mas era privilégio da mulher estar ao lado do personagem principal. De onde estava podia, por exemplo, reparar na minimeza que é uma língua de saguïm: um risco de lápis vermelho.
E havia os dentes também: quase que se poderiam contar cerca de milhares de dentes dentro do risco da boca, e cada lasca menor que a outra, e mais branca. O sagüim não fechou a boca um instante.
[...]
“Aposto” - pensou - “que nada mais me acontecerá durante muito tempo, aposto que agora vou entrar no tempo das vacas magras”. Que era em geral seu tempo.
Mas nesse mesmo dia aconteceram outras coisas. Todas até que dentro da categoria de bens declaráveis. Só que não eram comunicáveis. Essa mulher era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem consigo própria.
Mas assim é. E jamais se soube de um sagüim que tenha deixado de nascer, viver e morrer - só por não se entender ou não ser entendido.
De qualquer modo fora uma tarde embandeirada.

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