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A Vez de Missionária

Quando o fantasma de pessoa viva me toma. Sei que por vários dias serei essa mulher do missionário. A magreza e a delicadeza dela já me tomaram. É com algum deslumbramento, e prévio cansaço, que sucumbo ao que vou experimentar viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora ocupado demais com os meus deveres para poder arcar com o peso dessa vida nova que não conheço, mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. Percebo que no avião mesmo já comecei a andar com esse passo de santa leiga. Quando saltar em terra, provavelmente já terei esse ar de sofrimento físico e de esperança moral. No entanto quando entrei no avião estava tão forte. Estava, não, estou. É que toda a minha força está sendo usada para eu conseguir ser fraca. Sou uma missionária ao vento. Entendo, entendo, entendo. Não entendo é nada: só que "não entendo" com o mesmo fanatismo depurado dessa mulher pálida. Já sei que só daí a uns dias conseguirei recomeçar a minha própria vida, que nunca foi própria, senão quando o meu fantasma me toma.

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