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O Lustre (trecho)

Parecia-lhe ter mergulhado na vileza com a Sociedade das Sombras.
Olhava-se ao espelho, o rosto branco e delicado perdido em penum­bra, os olhos abertos, os lábios sem expressão. Ela se agradava, gostava daquele seu jeito, fino, tão sinuoso, dos cabelos sombreados, de seus om­bros pequenos e magrinhos. Como sou linda, disse. Quem me compra? quem me compra? — fazia um ligeiro muxoxo ao espelho — quem me compra: ágil, engraçada, tão engraçada como se fosse loura mas não sou loura: tenho lindos, frios, extraordinários cabelos castanhos. Mas eu quero que me comprem tanto que... que... que me mato! exclamou e espiando seu rosto espantado com a frase, orgulhosa de seu próprio ardor, riu uma gargalhada falsa, baixa e brilhante. Sim, sim, precisava de uma vida secre­ta para poder existir. De um instante para outro estava de novo séria, cansada — seu coração pulsava na sombra, lento e vermelho. Um novo elemento até agora estranho penetrara em seu corpo desde que existia a Sociedade das Sombras. Agora ela sabia que era boa mas que sua bon­dade não impedia sua maldade. Esta sensação era quase velha, fora des­coberta há dias. E um novo desejo tocava-lhe o coração: o de livrar-se ainda mais. Sair dos limites de sua vida — era uma frase sem palavras que rodava em seu corpo como uma força apenas. Sair dos limites de minha vida, não sabia ela que dizia olhando-se ao espelho do quarto de hóspedes. Eu poderia matá-los a todos, pensava com um sorriso e uma nova liberdade, fitando infantilmente sua imagem. Esperava um instante atenta. Mas não: nada se criara nela mesma com a sensação provocada, nem a alegria nem o pavor. E donde lhe nascera a idéia? — desde a manhã passada no porão as perguntas surgiam fáceis; e a cada momento ela progredia em que direção? ia adiante aprendendo coisas das quais em toda a sua vida não sentira sequer o começo. Donde nascera a idéia? de seu corpo; e se seu corpo era o seu destino... Ou ela aspirava os pensa­mentos do ar e devolvia-os como próprios, obrigando-se a segui-los?... Lá estava ela no espelho! gritou-se bruta e feliz. Mas o que podia e o que não podia? Não, não queria aguardar uma condição para matar, se havia de matar desejava-o livremente sem ocasião... isso seria sair dos limites de sua vida, não sabia ela que pensava. Numa súbita exaustão onde havia certa volúpia e bem-estar, deitou-se no leito dos hóspedes. E como uma porta que se fecha depressa sem estrépito, rapidamente ador­meceu. E rapidamente sonhou. Sonhou que sua força dizia alto e para o longe do mundo: quero sair dos limites de minha vida, sem palavras, só a força escura dirigindo-se. Um impulso cruel e vivo empurrava-a para a frente e ela desejaria morrer para sempre se morrer lhe desse um só instante de prazer, tal a gravidade a que chegara o seu corpo. Ela entrega­ria o próprio coração para ser mordido, ela queria sair dos limites de sua própria vida como suprema crueldade. Então caminhou para fora de casa e andou buscando, buscando com tudo de mais feroz que possuía; procu­rava uma inspiração, as narinas sensíveis como as de um animal fino e assustado, mas tudo ao seu redor era doçura e a doçura ela já conhecia, e já agora doçura era a ausência de medo e de perigo. Ela faria alguma coisa tão fora de seus limites que jamais a compreenderia — mas não tinha forças, ah não podia sair do que podia. Era preciso fechar um instan­te os olhos e rezar para si mesma brutalmente com desprezo até que um suspiro profundo, despindo-se da última dor, enfim esquecendo, caminhasse para o sacrifício do destino. Porque se eu sou livre, se com um gesto posso renovar tudo — caminhava ela no campo sob um céu esbranquiçado — então nada me impede de realizar esse gesto; essa era a sensa­ção turva e inquieta. Enquanto andava via um cão e num esforço arque-jante como o de sair de águas fechadas, como sair do que podia, resolvia matá-lo enquanto andava. Ele movia a cauda indefeso — pensou em matá-lo e a idéia era fria mas ela teve medo de estar enganando a si própria dizendo-se que a idéia era fria para fugir-lhe. Então guiou o cão com acenos até a ponte sobre o rio e com o pé empurrou-o seguramente até a morte nas águas, ouviu-o ganindo, viu-o debatendo-se, arrastado pela correnteza e viu-o morrer — nada restava, nem um chapéu. Seguiu serenamente. Serenamente continuava a buscar. Viu um homem, um ho­mem, um homem. Suas largas calças colavam-se ao vento, as pernas, as pernas magras. Era mulato o homem, o homem.

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