Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de fevereiro, 2009

Gertrudes Pede um Conselho

[...] “Libertar” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava, propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida, uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la. Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com irritante despreocupação. Vivia então os seus dias gloriosos. E chegava ao auge com algum pensamento que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para um convento! Salvar os pobres, ser en...

O Lustre (trecho)

Mudava de roupa serena e cuida­dosa. Metia-se com profundo amor-próprio na cama. Concentrava-se um instante até descobrir um cricri longínquo, nítido e frágil, o grilo brilhando. Seu próprio espírito se apoderara dela. Suspirava. Oh Deus, era estranho como não sentia nenhuma pressa. No fundo ela era aterrorizantemente quieta. Pensava de leve na manhã seguinte. Na cidade, mesmo que o silêncio fosse o ar mais próximo, atrás dele sempre vivia algum ruído. Acordava-se, ouvia-se aquele contínuo e suave machucar de papel que era o silêncio... percebia-se uma flautinha e um pequeno tambor soltos quem sabe onde no ar, soando longínquos, límpidos e bem dispostos— e sabia-se que na praça de um quartel soldados faziam exercícios ao sol. Mas agora era de noite, ela mal terminara de dar os últimos e ocos passos pela calçada em sombra. Submergia no cansaço, buscava-o. Tinha algo de flor o seu cansaço, um perfume alado e inconquistável de melão fresco, aquele êxtase de exaustão e vôo... a fraqueza co...

O Lustre (trecho)

Passava as manhãs sentada junto à mesa olhando os dedos, as unhas lisas e rosadas. Será que todo o mundo sabe o que eu sei? ocorria-lhe profundamente. Procurava distrair-se desenhando as linhas retas sem au­xílio de régua — mas onde estava o encanto do trabalho? sem poder precisar melhor parecia-lhe que falhava a todo o instante. Às vezes falava alto algumas palavras e enquanto se ouvia parecia-lhe numa estranheza inquieta e deliciosa que ela não era ela mesma e surpreendia-se num susto que era também mentira. E depois noutra estranheza fraca e embria­gada, ela era ela mesma. Dizia numa pequena voz aborrecida, balançando a cabeça; pois não estou contente, não estou nada contente. Ou entrava a viver numa exaltação íntima, numa pureza ardente cujo início era uma imperceptível falsidade. Sabia ainda fechar os olhos e cerrar-se numa força bruta. Entreabria então as pálpebras com delicadeza como deixando essa força escoar-se lentamente — e enxergava as coisas sob uma certa luz de crepúsculo...

Janeiro - Como Nasceram as Estrelas

Pois é, todo mundo pensa que sempre houve no mundo estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer. Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando saíam de debaixo das copas encontravam o calor, bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas sempre procurando milho porque a fome era daquelas que as faziam comer folhas de árvores. Mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça. — Vamos voltar e tra...

Saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.

O Lustre (trecho)

— Eu acho que no fundo todos os homens e mulheres vivem dizen­do: não quero pensar nisso. E pensando que não pensaram, hem? que acha? — terminara rindo muito com sagacidade, apertando os olhos. Ela também ria bastante balançando a cabeça várias vezes em assentimento, engolindo o café cheia de pasmo pela sua perspicácia. E não era verdade? ninguém podia suportar muito o que sentia. E agora a Bíblia... — Pois sim, pode-se ler, dissera friamente. Ele olhou-a e compreen­deram-se com cuidado, evitando qualquer clareza. — Mas beba o seu café antes que esfrie! gritou ela alto com intensida­de. Ele fitou-a hesitando um momento com esperança e de repente ale­grou-se, esfregou as mãos rápido: — É verdade, é verdade! Na noite seguinte bateu à porta, ela atendeu, viu-o com a pequena Bíblia na mão; de raiva e pudor ela recolheu-se, o corpo rígido, o rosto indiferente. Ele não a olhava. Entrou até o meio da sala, parou indeciso; ela permanecia em pé junto da porta como esperando que ele fosse embo­r...

O Lustre (trecho)

Esses eram momentos em que ela sofria mas amava seu sofrimento. Atravessava o dia, a necessidade de cumprir os pequenos deveres, a arrumação dos quartos, a espera, a realidade e as ruas — entre séria e ansiosa, perscrutando-se e ao espaço como se já estivesse misteriosamente ligada a Vicente através da distância. Porque mal acordada sabia que hoje era dia de vê-lo. Talvez não fosse tão subitamente — ela se proporcionava a pequena surpresa para dar-se felicidade mesmo à custa de conservar fechada a consciência e lá encerrada a obscura e estimulante mentira. As primeiras horas queimavam-se difíceis e lentas mas perto das dez da manhã limpa o tempo se precipitava alegre e fugitivo, claro com o dia e num sorriso ela se assistia movendo-se dagora em diante fácil e mansa. Quase não almoçava, era difícil cozinhar só para si e mesmo hoje ela jantaria bem com Vicente — comia uma fruta para contentar a mãe distante. E assim preparava-se para viver-diariamente, disposta a transformar-se no que nã...