Esses eram momentos em que ela sofria mas amava seu sofrimento. Atravessava o dia, a necessidade de cumprir os pequenos deveres, a arrumação dos quartos, a espera, a realidade e as ruas — entre séria e ansiosa, perscrutando-se e ao espaço como se já estivesse misteriosamente ligada a Vicente através da distância. Porque mal acordada sabia que hoje era dia de vê-lo. Talvez não fosse tão subitamente — ela se proporcionava a pequena surpresa para dar-se felicidade mesmo à custa de conservar fechada a consciência e lá encerrada a obscura e estimulante mentira. As primeiras horas queimavam-se difíceis e lentas mas perto das dez da manhã limpa o tempo se precipitava alegre e fugitivo, claro com o dia e num sorriso ela se assistia movendo-se dagora em diante fácil e mansa. Quase não almoçava, era difícil cozinhar só para si e mesmo hoje ela jantaria bem com Vicente — comia uma fruta para contentar a mãe distante. E assim preparava-se para viver-diariamente, disposta a transformar-se no que não era para ficar bem com coisas ao redor. Se Vicente amanhecera informe e áspero ela se conservaria em espera, as mãos delicadas, não se manifestando em nenhum sentido para que ele pudesse mudar sozinho, livre de sua existência. Se ele se mantinha calado e nervoso ela buscava ser larga e apesar de não consegui-lo inteiramente — nem seus olhos um pouco absortos nem seu corpo de gestos pequenos ajudavam essa atitude — Vicente notava seu esforço em apaziguá-lo; e isso tantas vezes bastara para ele sorrir e melhorar com benevolência.
De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Qu...
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