Mudava de roupa serena e cuidadosa. Metia-se com profundo amor-próprio na cama. Concentrava-se um instante até descobrir um cricri longínquo, nítido e frágil, o grilo brilhando. Seu próprio espírito se apoderara dela. Suspirava. Oh Deus, era estranho como não sentia nenhuma pressa. No fundo ela era aterrorizantemente quieta. Pensava de leve na manhã seguinte. Na cidade, mesmo que o silêncio fosse o ar mais próximo, atrás dele sempre vivia algum ruído. Acordava-se, ouvia-se aquele contínuo e suave machucar de papel que era o silêncio... percebia-se uma flautinha e um pequeno tambor soltos quem sabe onde no ar, soando longínquos, límpidos e bem dispostos— e sabia-se que na praça de um quartel soldados faziam exercícios ao sol. Mas agora era de noite, ela mal terminara de dar os últimos e ocos passos pela calçada em sombra. Submergia no cansaço, buscava-o. Tinha algo de flor o seu cansaço, um perfume alado e inconquistável de melão fresco, aquele êxtase de exaustão e vôo... a fraqueza confundia-se com a exaltação mais fina. Antes de cerrar os olhos lembrava numa última visão da escada colocada à terra, branca escura, branca escura, branca escura, escorrendo imóvel entre as paredes até a porta fechada. Fechada, escura, compacta, séria, lisa, grande, alta, intransponível — como era bom, como era feliz.
De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe. Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Qu...
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