Um pouco de felicidade clandestina

sábado, novembro 30, 2013

Seis anos se passaram desde a criação deste Blog.

Meu único objetivo com este Blog foi o de fazer com que a obra de Clarice Lispector pudesse se propagar para o maior número de pessoas. Trata-se de um objetivo cumprido; na época em que o Blog foi lançado, o conhecimento “internético” de Clarice nem se comparava ao que é hoje. Eu sempre adorei Clarice como uma personagem que “o sonho humano alimenta, [que] não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, tal como postulou Cecília Meireles ao falar da “liberdade”.

Chegamos ao fim de mais um ano de blog e ao início de mais um ano de tudo. Hoje nós somos o maior canal do mundo sobre Clarice Lispector - apoiados pela Editora Rocco, responsável pelas publicações das obras de Clarice Lispector.

E saibam: nada disso teria sido possível se vocês não tivessem tido a urgência para uma coisa que o mundo inteiro chama desesperadamente de “respiração”.

Keidy Matias, do Nordeste do Brasil/Rio Grande do Norte, historiadora pela UFRN.

A Maçã no Escuro

domingo, novembro 10, 2013

Segunda parte: Nascimento do herói
Três

Mas foi só de noite, sentado ereto na cama e sem acender a lamparina, que Martim entendeu plenamente o que quisera significar quando pensara que restava pouco tempo. Com espanto percebeu que na verdade não se referira ao tempo que lhe restava para planejar a fuga. Embora, desde o momento em que falara com Vitória no alpendre, tivesse agido como se fosse óbvio que a fuga deveria ser naquela mesma noite, antes que o caminhão fosse usado por Vitória, e se ele quisesse estar bem longe quando ela se encontrasse com o alemão. Mas como se a escuridão do depósito o levasse à sua própria escuridão, ele se entendeu afinal: não era para a fuga que restava pouco tempo. Estivera tão ocupado em planejar a escapada que não percebera que não pretendia fugir. “Ele tinha que possuir tudo antes do fim e tinha que viver uma vida inteira antes do fim.” Era para isso que o tempo se tornara curto.
Com um espanto deslumbrado — porque a verdade é que até esse instante ainda não se levara realmente a sério, nem sequer percebera até que ponto aceitara a gravidade, e, assustado, via agora que não estivera brincando — com espanto deslumbrado, não era para a fuga que restava pouco tempo. Sua própria coragem deixou-o então desconfiado. Ele se suspeitava. E não somente isto o homem percebeu com surpresa. Na violência do ultimato de agora Martim reconheceu que a idéia de que não havia tempo a perder estivera constantemente com ele, mesmo antes do ultimato, disfarçada sob o trabalho diário, paciente sob o sono em que uma pessoa se move lenta. Então, de repente excitadíssimo e caminhando de um lado para outro na exigüidade escura do depósito, Martim tomou consciência de que agora era apenas o guardião de um pequeno tempo que não lhe pertencia. E que sua tarefa era maior que o tempo. Agora que emergira até chegar ao ponto de homem na encosta, agora que emergira até entender seu crime e saber o que desejava — ou até ter inventado o que se passara com ele e inventado o que desejava? que importava se a verdade já existia ou se era criada, pois criada mesmo é que valia como ato de homem — agora que ele conseguira se justificar, tinha de prosseguir. E conseguir antes do fim próximo a — a reconstrução do mundo. Sim. A reconstrução do mundo. É que o homem acabara de perder completamente a vergonha. Não teve sequer pudor de voltar a usar palavras da adolescência; foi obrigado a usálas pois a última vez que tivera linguagem própria fora da adolescência; adolescência era arriscar tudo — e ele agora estava arriscando tudo. Tinha pouco tempo e devia começar agora mesmo, por assim dizer.
“Da reconstrução do mundo dentro de si, ele passaria à reconstrução da Cidade, que era uma forma de viver e que ele repudiara com um assassinato; era para isso que o tempo era curto,” “Acho que não sou nada tolo!”, pensou fascinado. Entendendo-se, afinal, uma calma enorme dominou o homem. Não o espantou sequer a enormidade insensata de seus propósitos. Uma vez que destruíra a ordem, ele nada mais tinha a perder, e nenhum compromisso o comprava. Ele podia ir de encontro a uma ordem nova. Então, espantado, ele se indagou se algum homem fora alguma vez tão livre como ele estava agora. Depois do quê, ficou calmo. Não porque estivesse calmo: na verdade seu corpo tremia. Mas porque, de agora em diante, e a começar deste próprio instante, ele teria que ser calmo e incrivelmente astuto para conseguir se acompanhar e acompanhar a rapidez com que teria que agir. Tinha que ser calmo.
Agora que alcançara na montanha a própria grandeza — a grandeza com que se  nascia. Essa grandeza — oh, apenas tamanho de homem — que fora sepultada como arma vergonhosa e inútil. Ser um homem fora alguma coisa sem aplicação. Mas grandeza de que ele agora enfim precisava como instrumento. Pela primeira vez Martim precisava profundamente de si mesmo. Como se enfim — enfim — tivesse sido convocado... O que o deixou afobado no escuro. E como no escuro nem as paredes viam seu rosto, Martim fez com grande alívio um rosto de dor, e depois de pudor pela alegria que tivera e depois de dor. Sentou-se enfim na cama. E num plano frio e calculado resolveu que sua primeira luta devia ser consigo mesmo. Pois, se ele queria reconstruir o mundo, ele próprio não servia... Se queria, como último termo final de seu trabalho, chegar aos outros homens — teria antes que terminar de destruir totalmente seu modo de ser antigo.
Para que o mendigo à porta do cinema não fosse uma pessoa abstrata e perpétua, ele teria que começar de muito longe, e do primeiro começo. É verdade que faltava pouco para destruir, pois, com o crime, ele já destruíra muito. Mas não de todo. Havia ainda... havia ainda ele próprio, que era uma tentação constante. E seu pensamento, como era, só poderia dar um determinado e fatal resultado, assim como uma foice só pode dar um determinado tipo de corte. Se a destruição primeira e grosseira ele a obtivera com o ato de cólera, o trabalho mais delicado estava ainda por se fazer. E o trabalho delicado era este: ser objetivo. Mas como? de que modo ser objetivo? Porque se uma pessoa não quisesse errar — e ele não queria errar nunca mais — terminaria prudentemente se mantendo na seguinte atitude: “não há nada tão branco como o branco”, “não há nada tão cheio de água como uma coisa cheia de água”, “a coisa amarela é amarela”. O que não seria mera prudência, seria exatidão de cálculo e sóbrio rigor. Mas aonde o levaria? porque afinal não somos cientistas.
O trabalho era este: ser objetivo. O que seria a experiência mais estranha para um homem. Que Martim se lembrasse, nunca ouvira falar de um homem objetivo. Não, não — confundiu-se ele um pouco cansado — houvera homens assim, já houvera, sim, homens cuja alma passara a existir em atos, e para quem os outros homens não tinham sido unhas grandes; houvera homens assim, ele não se lembrou mais quem, e estava um pouco fatigado, um pouco solitário. É que seu plano era tão facilmente escapável à sua própria percepção, tão fino no meio de sua força apenas grosseira, que ele teve medo de que o instinto não o socorresse e que, como recurso desesperado, ele se tornasse inteligente. E ele por enquanto não passava ainda de uma coisa vaga que queria perguntar, perguntar e perguntar — até que pouco a pouco o mundo fosse se formando em resposta.
Martim vacilou cansado, olhou em torno, recuperou-se um pouco. Avançava aos recuos, com aparente liberdade. O que lhe deu às vezes apoio, e generalizado ânimo de continuar, foi a lembrança do prazer bem-sucedido que ele tivera com mulheres. Mas, em seguida, o fato de jamais ter conseguido uma bicicleta paralisou-o: ele poderia, pois, falhar. Através de toda a sua vida, como uma torneira que pinga, ele quisera a bicicleta.
De novo seu plano lhe pareceu frágil demais, e aquela coisa respirante que ele era no escuro pareceu-lhe muito pouco, como começo de conversa. Martim se atrapalhou todo como se tivesse mais dedos do que precisava e como se ele próprio estivesse atabalhoando o próprio caminho. Veio-lhe então o desejo de que uma criança começasse a chorar para ele poder ser bom para ela. É que estava desamparado e sentia necessidade de dar, que era a forma como uma pessoa desajeitada sabia pedir. Sua ambição era grande e desamparada, ele quereria segurar a mão de uma criança; estava um pouco cansado.
“Para que quero tanto?”, insinuou-lhe então o hábito que terminara de novo por fazer com que a fome dos outros fosse uma abstração, o mesmo hábito que é o medo que um homem tem. “E se eu não me levasse a sério?”, pensou astuto, pois essa tinha sido a solução antiga, e a de muitos. “Porque se subitamente fôssemos dar importância ao que realmente nos importa — estaríamos com a vida perdida.” Mas também se dizia que aquele que perde a sua vida, ganha a sua vida.
Passado o repouso no desânimo, Martim remexeu-se inquieto: seria preciso violentar-se cada vez que o hábito voltasse. Pois de agora em diante já não lhe era mais permitido sequer interromper-se com uma pergunta — “para que quero tanto” — qualquer interrupção poderia ser fatal, e ele não só correria o risco de perder a velocidade como o equilíbrio. O crescimento é cheio de truques e de autoludíbrio e de fraude; poucos são os que têm a desonestidade necessária para não se enjoar. Com autopreservação feroz, Martim não podia mais se dar ao luxo da decência nem se interromper com uma sinceridade.