A Maçã no Escuro
domingo, novembro 10, 2013
Segunda parte: Nascimento do herói
Três
Mas foi só de noite, sentado ereto na cama e sem
acender a lamparina, que Martim entendeu plenamente o que
quisera significar quando pensara que restava pouco tempo.
Com espanto percebeu que na verdade não se referira ao
tempo que lhe restava para planejar a fuga. Embora, desde o
momento em que falara com Vitória no alpendre, tivesse
agido como se fosse óbvio que a fuga deveria ser naquela
mesma noite, antes que o caminhão fosse usado por Vitória, e
se ele quisesse estar bem longe quando ela se encontrasse
com o alemão. Mas como se a escuridão do depósito o levasse
à sua própria escuridão, ele se entendeu afinal: não era para
a fuga que restava pouco tempo. Estivera tão ocupado em
planejar a escapada que não percebera que não pretendia
fugir.
“Ele tinha que possuir tudo antes do fim e tinha que
viver uma vida inteira antes do fim.” Era para isso que o
tempo se tornara curto.
Com um espanto deslumbrado —
porque a verdade é que até esse instante ainda não se levara
realmente a sério, nem sequer percebera até que ponto
aceitara a gravidade, e, assustado, via agora que não estivera
brincando — com espanto deslumbrado, não era para a fuga
que restava pouco tempo. Sua própria coragem deixou-o
então desconfiado. Ele se suspeitava.
E não somente isto o homem percebeu com surpresa.
Na violência do ultimato de agora Martim reconheceu que a
idéia de que não havia tempo a perder estivera
constantemente com ele, mesmo antes do ultimato,
disfarçada sob o trabalho diário, paciente sob o sono em que
uma pessoa se move lenta. Então, de repente excitadíssimo e caminhando de um lado para outro na exigüidade escura do
depósito, Martim tomou consciência de que agora era apenas
o guardião de um pequeno tempo que não lhe pertencia. E
que sua tarefa era maior que o tempo.
Agora que emergira até chegar ao ponto de homem na
encosta, agora que emergira até entender seu crime e saber o
que desejava — ou até ter inventado o que se passara com ele
e inventado o que desejava? que importava se a verdade já
existia ou se era criada, pois criada mesmo é que valia como
ato de homem — agora que ele conseguira se justificar, tinha
de prosseguir. E conseguir antes do fim próximo a — a
reconstrução do mundo.
Sim. A reconstrução do mundo. É que o homem acabara
de perder completamente a vergonha. Não teve sequer pudor
de voltar a usar palavras da adolescência; foi obrigado a usálas
pois a última vez que tivera linguagem própria fora da
adolescência; adolescência era arriscar tudo — e ele agora
estava arriscando tudo.
Tinha pouco tempo e devia começar agora mesmo, por
assim dizer.
“Da reconstrução do mundo dentro de si, ele
passaria à reconstrução da Cidade, que era uma forma de
viver e que ele repudiara com um assassinato; era para isso
que o tempo era curto,” “Acho que não sou nada tolo!”,
pensou fascinado.
Entendendo-se, afinal, uma calma enorme dominou o
homem. Não o espantou sequer a enormidade insensata de
seus propósitos. Uma vez que destruíra a ordem, ele nada
mais tinha a perder, e nenhum compromisso o comprava. Ele
podia ir de encontro a uma ordem nova. Então, espantado,
ele se indagou se algum homem fora alguma vez tão livre
como ele estava agora. Depois do quê, ficou calmo. Não
porque estivesse calmo: na verdade seu corpo tremia. Mas
porque, de agora em diante, e a começar deste próprio
instante, ele teria que ser calmo e incrivelmente astuto para
conseguir se acompanhar e acompanhar a rapidez com que
teria que agir. Tinha que ser calmo.
Agora que alcançara na
montanha a própria grandeza — a grandeza com que se
nascia.
Essa grandeza — oh, apenas tamanho de homem — que
fora sepultada como arma vergonhosa e inútil. Ser um
homem fora alguma coisa sem aplicação. Mas grandeza de
que ele agora enfim precisava como instrumento. Pela
primeira vez Martim precisava profundamente de si mesmo.
Como se enfim — enfim — tivesse sido convocado... O que o
deixou afobado no escuro. E como no escuro nem as paredes
viam seu rosto, Martim fez com grande alívio um rosto de dor,
e depois de pudor pela alegria que tivera e depois de dor.
Sentou-se enfim na cama. E num plano frio e calculado
resolveu que sua primeira luta devia ser consigo mesmo.
Pois, se ele queria reconstruir o mundo, ele próprio não
servia... Se queria, como último termo final de seu trabalho,
chegar aos outros homens — teria antes que terminar de destruir
totalmente seu modo de ser antigo.
Para que o mendigo
à porta do cinema não fosse uma pessoa abstrata e perpétua,
ele teria que começar de muito longe, e do primeiro começo. É
verdade que faltava pouco para destruir, pois, com o crime,
ele já destruíra muito. Mas não de todo. Havia ainda... havia
ainda ele próprio, que era uma tentação constante. E seu
pensamento, como era, só poderia dar um determinado e fatal
resultado, assim como uma foice só pode dar um
determinado tipo de corte. Se a destruição primeira e
grosseira ele a obtivera com o ato de cólera, o trabalho mais
delicado estava ainda por se fazer. E o trabalho delicado era
este: ser objetivo.
Mas como? de que modo ser objetivo? Porque se uma
pessoa não quisesse errar — e ele não queria errar nunca
mais — terminaria prudentemente se mantendo na seguinte
atitude: “não há nada tão branco como o branco”, “não há
nada tão cheio de água como uma coisa cheia de água”, “a
coisa amarela é amarela”. O que não seria mera prudência,
seria exatidão de cálculo e sóbrio rigor. Mas aonde o levaria?
porque afinal não somos cientistas.
O trabalho era este: ser objetivo. O que seria a experiência
mais estranha para um homem. Que Martim se
lembrasse, nunca ouvira falar de um homem objetivo. Não,
não — confundiu-se ele um pouco cansado — houvera
homens assim, já houvera, sim, homens cuja alma passara a
existir em atos, e para quem os outros homens não tinham
sido unhas grandes; houvera homens assim, ele não se
lembrou mais quem, e estava um pouco fatigado, um pouco
solitário. É que seu plano era tão facilmente escapável à sua
própria percepção, tão fino no meio de sua força apenas
grosseira, que ele teve medo de que o instinto não o
socorresse e que, como recurso desesperado, ele se tornasse
inteligente. E ele por enquanto não passava ainda de uma
coisa vaga que queria perguntar, perguntar e perguntar — até
que pouco a pouco o mundo fosse se formando em resposta.
Martim vacilou cansado, olhou em torno, recuperou-se
um pouco. Avançava aos recuos, com aparente liberdade. O
que lhe deu às vezes apoio, e generalizado ânimo de
continuar, foi a lembrança do prazer bem-sucedido que ele
tivera com mulheres. Mas, em seguida, o fato de jamais ter
conseguido uma bicicleta paralisou-o: ele poderia, pois,
falhar. Através de toda a sua vida, como uma torneira que
pinga, ele quisera a bicicleta.
De novo seu plano lhe pareceu
frágil demais, e aquela coisa respirante que ele era no escuro
pareceu-lhe muito pouco, como começo de conversa. Martim
se atrapalhou todo como se tivesse mais dedos do que
precisava e como se ele próprio estivesse atabalhoando o
próprio caminho. Veio-lhe então o desejo de que uma criança
começasse a chorar para ele poder ser bom para ela. É que
estava desamparado e sentia necessidade de dar, que era a
forma como uma pessoa desajeitada sabia pedir. Sua
ambição era grande e desamparada, ele quereria segurar a
mão de uma criança; estava um pouco cansado.
“Para que quero tanto?”, insinuou-lhe então o hábito
que terminara de novo por fazer com que a fome dos outros
fosse uma abstração, o mesmo hábito que é o medo que um
homem tem. “E se eu não me levasse a sério?”, pensou
astuto, pois essa tinha sido a solução antiga, e a de muitos.
“Porque se subitamente fôssemos dar importância ao que
realmente nos importa — estaríamos com a vida perdida.”
Mas também se dizia que aquele que perde a sua vida, ganha
a sua vida.
Passado o repouso no desânimo, Martim remexeu-se inquieto:
seria preciso violentar-se cada vez que o hábito voltasse.
Pois de agora em diante já não lhe era mais permitido
sequer interromper-se com uma pergunta — “para que quero
tanto” — qualquer interrupção poderia ser fatal, e ele não só
correria o risco de perder a velocidade como o equilíbrio. O
crescimento é cheio de truques e de autoludíbrio e de fraude;
poucos são os que têm a desonestidade necessária para não
se enjoar. Com autopreservação feroz, Martim não podia mais
se dar ao luxo da decência nem se interromper com uma
sinceridade.
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